quinta-feira, 29 de junho de 2017

A TERTÚLIA DOS QUE NÃO VIAJAM

Dedicado aos 100FUGAS


Não é um grupo grande. A admissão de novos membros é feita por convite, após discussão e concordância unânime de todos os tertulianos.

A ideia base do grupo é bem simples: para quê ir visitar a grande muralha da China imerso numa multidão de chineses, levando empurrões e pisadelas, quando se pode apreciar a arquitectura daquele famoso monumento na fotografia em papel couché de um guia de viagens ou numa imagem no ecrã de um computador? Que prazer se tira de visitar Veneza e observar um canal malcheiroso engarrafado de gôndolas transportando turistas tirando selfies, comparado com o que resulta da observação do mesmo canal numa foto cuidadosamente enquadrada, com uma única gôndola para dar a atmosfera local?

A tertúlia reúne regularmente nas noites de quinta-feira, na sala de jantar da leitaria Estrela da Manhã, por amável cedência do proprietário. Há nesse dia folga do pessoal e a leitaria não serve jantares.

As sessões seguem invariavelmente o mesmo formato. Sob a presidência do decano, que declara aberta a sessão, um dos membros, designado na semana anterior, inicia a palestra com a frase ritual: “Eu nunca estive em…” seguida do nome de uma cidade. E então descreve com detalhe os pontos de interesse da referida cidade, castelos, pontes, igrejas, estátuas… Quando há anos a tertúlia começou, os materiais de apoio eram basicamente folhetos das agências de viagens e publicações editadas pelos organismos locais de turismo, que eram passados de mão em mão para apreciação dos tertulianos. Mas com o desenvolvimento das novas tecnologias as apresentações foram-se tornando mais sofisticadas, incluindo informações e fotografias obtidas através do google ou da wikipédia, visualizadas usando um projector ligado a um computador portátil.

O decano da tertúlia é o Esteves da papelaria, alvo do respeito de todos os tertulianos por nunca ter viajado! Nado e criado no bairro, herdou a papelaria por morte do seu pai, e é ele o grande animador daquele grupo.

Naquela noite era a vez do Antunes, dono da oficina de bate-chapa, conhecido entre os amigos por “come e bebe”, devido à sua atracção pelos prazeres da mesa. A sua alcunha estava perfeitamente ajustada ao seu aspecto físico.

A um sinal de Esteves pronunciou a frase ritual: “Eu nunca estive em Segóvia”.

E iniciou a sua apresentação com uma descrição bem organizada da cidade património mundial, localização na comunidade de Castela e Leão, o Alcazar, com o Real Colégio de Artilharia, a Catedral - as palavras iam acompanhando bonitas imagens obtidas na Net - a Casa de los Picos - muito parecida à nossa Casa dos Bicos, comentaram alguns tertulianos - , o cemitério judaico, o Castelo, a Casa de la Moneda, onde ao longo de trezentos anos foi cunhada a moeda espanhola, o aqueduto romano, construído no primeiro século da era cristã e que transportava água para a cidade  desde o Rio Frio a cerca de 17 quilómetros…

“E à sombra do aqueduto há um restaurante onde se come o melhor pulpo asturiano que eu já alguma vez…”

O Antunes calou-se subitamente, ao tomar consciência de que se tinha deixado levar pelo entusiasmo… A cara começou a ficar vermelha, e a sua atrapalhação atingiu o pico quando viu o olhar de reprovação do Esteves.

Este apenas disse: “A forma como falaste leva-me a concluir que já estiveste em Segóvia, o que torna a frase com que iniciaste a tua apresentação – Eu nunca estive em Segóvia - obviamente falsa. Se tens alguma coisa a declarar em tua defesa, fá-lo agora. Se não, e em consequência da violação do artigo 2º dos Estatutos, deixas neste momento de pertencer à Tertúlia dos que não viajam, pelo que peço que te retires.”

De olhos baixos, o Antunes saiu da sala.

O Esteves consultou um livrinho de apontamentos e anunciou: “Na próxima sessão a apresentação ficará a cargo do Joaquim. Está encerrada esta sessão.”

Os membros da tertúlia foram saindo em pequenos grupos, comentando entre si, em voz baixa, o que se tinha passado. Esteves foi o último, arrumou o projector e o computador portátil, de que era fiel depositário, apagou a luz e ao passar pelo balcão despediu-se do dono da leitaria, agradecendo a cedência do espaço.

Uns minutos mais tarde, Esteves subia as escadas carcomidas do velho prédio onde vivia. Entrou no 2º Esquerdo e fechou a porta com duas voltas da chave. Pousou a maleta com o computador e o projector e foi direito a uma gaveta da cómoda antiga, que abriu e de onde extraiu um envelope amarelecido pelo tempo. Deste tirou uma fotografia e meia dúzia de papeis de rebuçado, cuidadosamente alisados. A foto mostrava um casal e uma criança, tendo como fundo um edifício com um letreiro que anunciava: Galerias Preciados.

Observou a foto durante algum tempo. Ainda recordava com saudade aquela viagem com os pais a Badajoz, no ano em que fizera o exame da 4ª classe. Mas a sua reputação como decano da tertúlia sobrepunha-se a tudo o resto.

Colocou a fotografia e os papeis dos Caramelos Viuda Solano num cinzeiro e chegou-lhes a chama de um isqueiro. Ficou a olhar as chamas que em menos de um minuto fizeram desaparecer foto e papeis em fumo e cinza.

Foi deitar-se aliviado. A sua posição como decano continuava sólida. As provas de que alguma vez tivesse viajado tinham sido totalmente destruídas.