terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O país das sombras e da luz

Naquele país havia um sol que brilhava sempre e as pessoas usavam a sombra que ele produzia para se orientarem. Seguiam a sombra ou a direcção oposta, e a vida era simples de levar.
Mas as alterações climáticas trouxeram um denso nevoeiro, as sombras desapareceram e os habitantes daquele país ficaram totalmente desorientados, porque a direcção da sombra era para cada uma sua única linha de referência.

E a situação poderia ter-se tornado catastrófica, não fora a ideia que ocorreu a um cidadão de fabricar um chapéu munido de uma haste curva com uma pequena lâmpada na ponta. Postos à venda, toda a gente correu a comprar, de forma que cada habitante podia agora tomar as suas decisões como fazia antes de surgir o nevoeiro.

Houve uma proposta no sentido de nomear este cidadão “Salvador da Pátria” mas ele, modestamente, apenas aceitou o título “Aquele que devolveu a cada um a sua sombra”.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

 

 

Crónica breve das 64 casas

O Rei Negro era um tirano. Oprimia Peões e Cavalos sem dó nem piedade. Com a conivência dos Bispos, prendia e sacrificava dissidentes, numa exibição gratuita de poder absoluto. As tensões foram-se acumulando.
 
Quando aconteceu, a revolta no campo negro foi imparável. Um dos Bispos ainda conseguiu fugir por uma diagonal mal vigiada, mas o outro foi agarrado e pisado pelos Cavalos e ficou irreconhecível. A Rainha, porque tinha atenuantes, foi encerrada numa Torre. Mas o Rei foi preso, julgado, condenado e executado.

Mal as notícias vindas do outro lado do tabuleiro chegaram ao campo branco, o Rei Branco convocou um parlamento, abdicou e proclamou a república.

Nunca mais houve jogos naquele tabuleiro.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

SETE DIAS NUM UNIVERSO PARALELO

Este texto é dedicado à memória de Luís Alves,
saudoso amigo com quem muitas vezes conversei
sobre a necessidade de um Serviço Nacional de Saúde
numa sociedade que pretendemos justa.

Dedico-o também aos profissionais de saúde
que me trataram durante estes sete dias,
a quem as dificuldades que lhes têm sido impostas
não inibem de cuidar dos doentes
com profissionalismo e simpatia.
Para eles o meu reconhecimento.


DIA PRIMEIRO

Há diversas formas de efectuar a transição entre universos. A minha passagem foi relativamente trivial. Na madrugada do dia 24 de Abril de 2015 sofri uma queda desamparada, seguida por dores muito fortes na perna direita. Chamado o 112, chegou rapidamente uma equipa do INEM que após analisar a situação me colocou numa cadeira de rodas na qual me transportou até à ambulância onde fui acomodado e imobilizado numa maca. Fui então conduzido ao Hospital de Santa Maria, um dos portais de entrada no universo paralelo conhecido como Serviço Nacional de Saúde.

Passada a triagem, assegurada por uma radiografia, um electrocardiograma e uma análise ao sangue, uma médica anuncia-me o diagnóstico e o que se seguirá: tenho uma fractura do colo do fémur / tenho de ser operado / vou ser internado.

É desta forma que entro no universo paralelo.

Sou conduzido ao local onde vou viver nos próximos dias, um quarto/enfermaria onde vou coabitar com mais três doentes. Dois enfermeiros ligam-me a perna e colocam uma espécie de tala, ligada a um contrapeso que mantém a perna sob tracção. Creio que a ideia é que a fractura não comece a consolidar de forma errada.

Dores? Nem sempre, só quando mexo – ou me mexem – a perna. O que é inevitável nas mudanças de posição na cama. O paracetamol intravenoso vai controlando a situação. Mas quando dói, dói mesmo.

Começo a aprender a estrutura e funcionamento do universo paralelo.



DIA SEGUNDO

A luz no universo paralelo não segue os padrões circadianos. Os espaços podem ser inundados por uma luz branca, crua, se for necessário para o tipo de actividade a realizar, ou quase totalmente obscurecidos para conforto dos internados.

A alternância sono/vigília sofre alterações. Dorme-se mais irregularmente ao longo das 24 horas convencionais de medição do tempo.

O universo normal é múltiplo, os diversos actores têm diferentes objectivos e vão seguindo a sua existência tentando atingi-los. Essa multiplicidade de objectivos que enquadram a nossa vida é drasticamente reduzida. O universo paralelo está focado, tem uma finalidade, tratar os doentes, e tudo é organizado em função disso.

Ainda que haja um televisor na sala onde me encontro, os acontecimentos no universo de onde vim chegam-me atenuados, desfocados. Vejo uma reportagem sobre as comemorações do 25 de Abril e parecem acontecimentos longínquos, quase como noutro planeta...

As rotinas que enquadravam o nosso dia-a-dia vão-se esfumando até desaparecerem, como coisas pertencentes ao outro universo. Passamos a orientar-nos pelas refeições, a higiene, as tomas de medicamentos...


DIA TERCEIRO

O universo paralelo inclui duas grandes classes de habitantes: os doentes e os que se ocupam dos doentes. No segundo grupo estão os médicos, os enfermeiros e os auxiliares.

Os médicos examinam, operam, prescrevem, decidem. Em particular são eles que decidem sobre a entrada (“internamento”) e a saída (“alta”) do universo paralelo. É possível entrar e sair do universo paralelo por períodos limitados, da ordem de uma ou duas horas (as chamadas “visitas”), mas um visitante apenas fica a conhecer o nível superficial desse universo.

Os enfermeiros gerem a “hora a hora”, às vezes o “minuto a minuto”. É a medicação, são os tratamentos, é o olhar que verifica o nível do frasco de soro ou paracetamol, é a disponibilidade que sabemos estar ao alcance de uma campainha. Dirigem-se a cada doente pelo nome, perguntam se tem dores, tentam responder a eventuais queixas.

Os auxiliares controlam o resto, as refeições, a higiene, os pequenos (mas importantes) pormenores que nos fazem sentir humanos. Com permanente boa vontade e (muitas vezes) sentido de humor.

São como três camadas do universo paralelo com interfaces onde as fronteiras são geralmente nítidas.

Anunciam-me que poderei ser operado amanhã.


DIA QUARTO

Apenas um copo de chá em substituição do pequeno-almoço como preparação para a operação. No início da manhã e ao princípio da tarde dois dos meus companheiros de quarto são levados para ser operados. O dia vai deslizando e começo a convencer-me que já não será hoje. Com a ansiedade da espera nem sinto fome.

Ao fim da tarde um médico entra no quarto e subitamente o tempo acelera: começam a empurrar a minha cama em direcção ao Bloco Operatório.

O Bloco

Não se vai, é-se levado.

Enquanto a cama rola por corredores, entra num ascensor, sobe, mais corredor, deitado de costas vejo o tecto e a parte superior das paredes a deslizar por cima de mim.

No bloco três anestesistas, jovens, bem-dispostas, fazem-me perguntas, usam toucas coloridas, depois chega outro médico que me injecta um líquido no braço. Ainda lhe pergunto se aquilo é para me pôr a dormir e não me lembro de mais nada.

Alguém me diz: "Sabe onde está? Já foi operado, correu tudo bem". Recordo a minha sensação, primeiro de surpresa (Já? Ainda há instantes estava a falar com o médico...) e em seguida de alívio. Embora neste tipo de operação a probabilidade de algo correr mal seja muito baixa, há sempre um cantinho do nosso cérebro que, a medo, encara a hipótese de que o “bilhete” para o bloco possa não ser de “ida e volta”. Invade-me um sentimento de gratidão difusa, em relação a tudo à minha volta. A confirmação de que fui e regressei.

Agora, passado algum tempo, suspeito que a pergunta "Sabe onde está?" teve lugar, não no Bloco mas no Recobro.


DIA QUINTO

O Recobro

Sossego. Calma. Penumbra. Silêncio só interrompido por ocasionais blips e pings dos instrumentos que monitorizam a vida dos doentes nas camas dispostas à volta da sala, ou por curtos diálogos a meia voz dos profissionais de turno.

No centro uma ilha, oásis de luz na obscuridade da sala, onde está o pessoal de serviço, quando não anda junto dos doentes.

O recobro é um espaço suspenso no tempo, como um casulo, sentimos o conforto de saber que há quem esteja a tomar conta de nós, e capacitado para actuar caso a necessidade surja.

Durmo com sonhos, por vezes a repetirem-se como em loop, quase a roçar o pesadelo, no que calculo que seja a ressaca da anestesia.

Passada a noite, regresso ao quarto de manhã.

Sentado numa cadeira pela primeira vez desde o internamento, é sentado que almoço. Durante a tarde trazem-me uma cadeira de rodas e dou uns pequenos “passeios” pelo corredor. É agradável o movimento – ainda que por interpostas rodas – face à imobilidade na cama.


DIA SEXTO

Uma fisioterapeuta ensina-me a andar usando o andarilho. Pé direito, pé esquerdo, deslocação do andarilho. Pé direito, pé esquerdo… A tensão nos músculos desabituados deixa-me rapidamente cansado, tenho de parar de vez em quando.

Visita do cirurgião que me operou, que me diz que “hoje ou amanhã” vou ter alta.


DIA SÉTIMO

De manhã, nova lição, agora para aprender a andar com as canadianas, que irão ser as minhas companheiras de marcha por alguns meses.

Já vestido e preparado para sair, ainda almoço numa sala onde existe uma vitrina que exibe uma colecção de próteses ortopédicas.
Um auxiliar leva-me numa cadeira de rodas até junto da viatura de transporte de doentes, parada no parque de estacionamento. Enquanto espero um pouco, antes de entrar no veículo que me levará a casa, o calor agradável do sol que eu não sentia no corpo há sete dias dá-me as boas vindas e convence-me que estou de regresso ao meu universo habitual.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

PEGASUS

Pegasus é um blogue de literatura fantástica internacional, criado por Paolo Secondini. Além do núcleo principal, em italiano, tem secções em espanhol, francês e português, esta última coordenada por Stefano Valente, onde foram recentemente republicados dois pequenos contos meus.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Colecções (3)

Coleccionava buracos. Desde muito novo se sentia fascinado pelo conceito, a ausência, o nada rodeado de matéria, o vazio filosófico.
Começou por peças simples, orifícios regulares ou irregulares na parede e no chão, buracos em peças de roupa. Buracos nas estradas, diversos. Vários buracos de fechadura dignos de nota.
Passou depois a especializar-se em buracos tecnológicos. Furos provocados por lasers em chapas, orifícios produzidos por punções em matrizes metálicas, aberturas provocadas por explosões de alta intensidade em reservatórios industriais…
Mas a peça mais valiosa do museu, responsável por filas intermináveis de visitantes, era o micro buraco negro que adquirira por uma quantia não divulgada ao consórcio nipo-americano que os tinha desenvolvido e começara recentemente a vendê-los.
O drama ocorreu quando a funcionária da limpeza, na sua actividade nocturna, deslocou inadvertidamente o botão que controlava o diâmetro do limite de atracção. Na manhã seguinte, inconsciente desse facto, ao fazer uma demonstração para um grupo de visitantes, o coleccionador avançou a mão que foi apanhada pelo enorme campo gravítico; numa fracção de segundo desapareceu da vista de todos.
A maior parte dos visitantes testemunhas do acontecimento tiveram que passar por sessões de apoio psicológico. A explicação do que de facto aconteceu é ainda hoje motivo de viva polémica entre cosmologistas e físicos das altas energias.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Colecções (2)

Coleccionava folhas de cálculo. Possuía alguns exemplares bem cotados no mercado, produzidos em Vizicalc, Lotus 1-2-3 e Symphony, que eram considerados memorabilia em certos círculos.
Mas a sua peça mais valiosa, pela qual já lhe tinham oferecido quantias astronómicas, era a famosa folha excel produzida pela troika e apadrinhada pelo ministro Victor Gaspar, que demonstrava sem sombra de dúvida que reduzindo a população à miséria o país iria desenvolver-se com velocidade estonteante.

Colecções (1)

Era um filatelista mundialmente conhecido, figura destacada no “Who’s who in stamp collecting”. A súbita consciência da catastrófica diminuição do tráfego postal clássico levou-o a tomar uma decisão drástica: pôs fim à sua colecção de selos e começou a coleccionar endereços de email.
É hoje inaugurada, com a presença do Secretário de Estado da Cultura, a exposição do acervo que entretanto reuniu, de endereços de email de todo o mundo. Na parede do fundo da galeria, bem iluminada, a peça mais importante da sua colecção: um endereço de email da Coreia do Norte.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Sombras

Na praça, debaixo de um sol forte, a multidão agitava-se num movimento desordenado. Poderiam ter comparecido na espectativa de algum acontecimento, ou desde sempre terem ali estado. De repente, acima do ruído de fundo, ouviu-se um grito: “Este cidadão não tem sombra!”
Um círculo abriu-se rapidamente em torno do visado que, incapaz de argumentar, ali ficou exposto ao escrutínio geral.
“É uma abominação!”, continuou a gritar o que tinha dado o alarme. “Não podemos tolerar entre nós alguém que não tem sombra!”
Da multidão saiu um rugido surdo, que se foi ampliando até se tornar em algo inteligível: “À morte! À morte!”
O círculo fechou-se sobre o homem sem sombra e quando a multidão dispersou de novo ficou um corpo no chão, imóvel, sangrando de múltiplas feridas.
O homem que tinha dado o alarme passeava pela praça, gozando o seu momento de fama. Até que olhou para o chão e ficou horrorizado. Tinha duas sombras! Tentou infiltrar-se na multidão mas foi tarde demais. Já outro cidadão, e depois outro, tinham visto…