terça-feira, 9 de abril de 2013

Agora que se tornou a discutir até à exaustão a matéria (adoro a utilização da palavra "matéria" no discurso mediático) do comentário televisivo, fui encontrar este texto escrito há cinco ou seis anos, inspirado numa rábula dos Gatos Fedorentos e nunca publicado.

O Professor

O Professor aparece à hora prevista. Traz como sempre as suas escolhas, criteriosamente escolhidas, e começa a lição.
Famílias inteiras sentam-se em redor dos televisores, porque o Professor fala sempre alguma coisa que interessa a cada um.
O desporto é uma das suas (inúmeras) especialidades: ténis para a classe média-alta, futebol para a população em geral (já foi capaz de comentar um jogo depois de declarar não o ter visto...), referências rápidas mas apreciativas ao campeonato nacional de caricas ou à final europeia de matraquilhos. Mas fala também de política, naturalmente, de cinema, teatro, renda de bilros e bordados de Castelo Branco para agradar às avozinhas, o preço do chicharro para enlevo das donas de casa, uma ou outra notícia necrológica (anunciar a morte de alguém que se encontra vivinho da costa convenhamos que não é para qualquer um)...
Não há assunto sobre o qual o Professor se reconheça incapaz de soltar umas palavras, muitas vezes enunciando três razões para as opiniões que emite: uma primeira, uma segunda e uma terceira, sublinhadas com o arregalar dos olhos, balouçar da cabeça e profusão de movimentos das mãos e dos braços.
E o Professor dá notas. Treze valores, quinze valores, onze valores... A palavra valores é sempre bem cheia, há que deixar no público a impressão indelével de que um professor ao classificar nunca se engana e nunca tem dúvidas. E o povo adora este frenesi classificativo, sobretudo quando o político na mó de baixo apanha uma má nota!
Depois é a vez dos livros, ou melhor, da enunciação dos títulos dos livros (falar em recensão ou crítica seria grosseiramente exagerado): uma imagem fugaz da capa, e cada livro é despachado a uma velocidade estonteante, com uma apreciação que pode assumir uma de quatro hipóteses. Primeira: “li e gostei”; segunda: “li e não gostei”; terceira: “não li mas gostei”; e finalmente a quarta : “não li e não gostei”. E imaginamos facilmente os responsáveis das FNACs e Bertrands a correr para as lojas encher as prateleiras, colando etiquetas amarelo fluorescente com os dizeres: “Recomendado pelo Professor”.

--- 000 ---

O pior de tudo isto não é o que fala, porque palavras leva-as o vento. O pior é que muitos daqueles que fielmente seguem as homilias ficam com a ideia de que um Professor universitário é aquilo: uma pessoa que fala sobre tudo, o que sabe e o que não sabe, com igual ligeireza e desenvoltura. Em suma, um “fala-barato”...
O que é lamentável porque, apesar das inevitáveis excepções, se trata de uma classe profissional que não merece ficar ligada a esse estereótipo!

Declaração de interesse: fiz parte da classe profissional supramencionada.


1 comentário:

luisa disse...

Já deixei de os ouvir falar há muito e nem os recém-chegados contadores de narrativas me prenderão ao televisor. :)