domingo, 6 de janeiro de 2013

Querido Líder

A dor nos pulsos, não muito forte, mas incómoda, fez-me abrir os olhos. Isso e o cheiro pestilento, a fezes e urina. Olho em volta; estes tipos da Inquisição sabiam o que faziam. A simples visão desta masmorra aterroriza qualquer um. Aconteceria certamente comigo, se eu não soubesse que estou num sonho.
O espaço é circular, iluminado por tochas, que espalham uma luz amarelada e produzem sombras que flutuam. Presos pelos pés e mãos às argolas chumbadas na parede encontram-se vários homens e mulheres, acusados dos mais diversos crimes, a grande maioria dos quais certamente não cometeram. Na posição em que se encontram, podem observar os tormentos infligidos aos seus companheiros de infortúnio… Uma ideia brilhante!
A acústica da masmorra é perfeita. Quando um supliciado grita, a sua voz ressoa nas paredes e abóbada de pedra, e parece que o eco continua, mesmo depois de a pessoa torturada ter parado de gritar. Quando os gritos param, acima do crepitar dos archotes consegue ouvir-se o ruído dos ossos a serem partidos, ao que se segue nova série de gritos lancinantes.
No meio do recinto estão os aparelhos de tortura, onde os prisioneiros são sujeitos a uma diversidade de procedimentos, todos com o objectivo de arrancar uma confissão, maximizando a dor infligida. Cortar, arrancar, queimar, furar, esmagar, o único cuidado é fazer com que o torturado não morra, porque obviamente um morto não pode confessar nada. Há os carrascos, que não se podem queixar de falta de trabalho, um frade que sentado a uma mesa consulta os processos e escreve as confissões que sejam produzidas, e por vezes mais um religioso tentando forçar ao arrependimento algum herege mais contumaz.
Terei de falar com Malik depois de despertar. Será bom que tenha uma explicação para me fazer aparecer no sonho como prisioneiro. Poderia ter aparecido como o frade escriturário ou como um dos torturadores; obteria a mesma informação, mas aparecer como torturador dava-me muito mais gozo!
A rotina do processo é simples mas eficaz: um prisioneiro é solto das argolas na parede, conduzido a um dos aparelhos e preso a ele. Depois de torturado, o que pode durar mais ou menos tempo consoante as respostas que for dando (ou não) ao inquisidor, é levado para uma cela onde ficará aguardando nova sessão de tortura ou o auto-de-fé, e outro prisioneiro toma o lugar dele. E outro ainda é trazido de fora e preso à parede, para observar e ficar aterrorizado.
Já assisti à tortura de uma velha a quem partiram ambas as pernas, que foi levada por dois dos carrascos, as pernas inertes arrastadas pelo chão, um rapaz que ficou sem metade dos dentes e as articulações dos braços e pernas deslocadas, uma mulher jovem queimada com ferros em brasa…
Tirei algumas ideias interessantes sobre técnicas de interrogatório e está na altura de interromper o sonho. Dou início à rotina de acordar:

Do sonho à realidade,
do possível à verdade,
Três, dois, um, zero.”

Espero ver-me de novo sentado no laboratório na cave do palácio presidencial, com os técnicos à minha volta apressando-se a libertar-me dos cabos e eléctrodos que me ligam à máquina dos sonhos, como sucedeu nas experiências anteriores. Mas nada acontece, e continuo nesta masmorra fria, escura e mal cheirosa.
Repito na minha cabeça a litania: “Do sonho à realidade / do possível à verdade /Três, dois, um, zero.”
À palavra zero, sinto como um estalido no meu cérebro, mas em vez de despertar começo a ouvir a voz de Malik a ressoar na minha cabeça:
“Querido Líder” (é imaginação minha ou há um tom irónico na sua invocatória?)
“Está a ouvir uma mensagem que implantei no seu cérebro, para ser activada quando decidisse sair do sonho. Venho comunicar-lhe que houve uma pequena mudança de planos. A máquina onde foi ligado desta vez, embora parecida por fora com a máquina de sonhar que já tinha utilizado várias vezes, era na realidade uma coisa completamente diferente: era uma máquina de viajar no tempo!”
“Por outras palavras, Querido Líder, você não está a sonhar… foi efectivamente transportado para a masmorra da Inquisição. Por esta altura deve ter já assistido à tortura de meia dúzia de desgraçados, e se o conheço bem, deve ter pensado que alguns dos instrumentos poderiam ser úteis aqui nas masmorras do palácio presidencial. Deixe-me tentar adivinhar: o Potro? A Roda? A Virgem de Ferro? Que pena não poder conhecer a sua escolha…”
Como se atreveu ele a fazer isto? A mim? Não sabe que a mulher e o filho serão torturados até à morte à sua frente se me acontecer alguma coisa?
“Sei o que está a pensar, Querido Líder. Que eu, ao fazer isto, terei sacrificado a minha mulher e o meu filho. Mas eu vou-lhe explicar, para que até essa pequena satisfação desapareça do seu espírito. Com a máquina do tempo, viajei ao futuro, a um tempo onde a clonagem é corrente e fabriquei um clone… seu! Sim, um clone do Querido Líder! Idêntico nos mínimos pormenores. Assim, para os assassinos a seu mando, o nosso Querido Líder continua a dirigir este país. Irá nos próximos dias emitindo ordens – dadas por mim – que lentamente irão acertando o muito que há para corrigir. Aliás, já começou: a minha família já está confortavelmente em casa, e não na prisão abjecta para onde os tinha atirado.
Adeus, Querido Líder. Desejo-lhe uma boa estadia nesse local.”
A mensagem acabou. O meu cérebro ficou como vazio. Dois soldados vêm agora buscar o prisioneiro ao meu lado, para ser interrogado. Um deles olha para mim, abre a boca num riso de dentes podres e diz-me: “Não tenhas pressa, tu vais já a seguir”. Cospe-me na cara, resmunga “Feiticeiro do diabo!” e benze-se.
Fico à espera, imerso num desespero crescente… Dentro em breve virão desprender-me das argolas para ser interrogado…