segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Lá fora...

Foi hoje publicado no site Bewildering Stories a versão em inglês de um conto - Viagem no Tempo - publicado neste blogue no último dia do ano passado.
Em estrangeiro ficou com o nome  RTFM — Especially Aunt Bessie’s.

Enjoy...

sábado, 23 de novembro de 2013

Scene Stealers

writetodone é um site recheado com artigos sobre a arte da escrita. Tem uma secção intitulada Scene Stealers que funciona como uma espécie de workshop de escrita: dão uma frase e tem que se escrever uma história completa (<= 350 palavras) que comece com a frase dada.

A última frase (Scene Stealer #16) foi:

He pushed the door open and went in. It was the last thing he expected.

e a minha história foi a seguinte:

He pushed the door open and went in. It was the last thing he expected. He thought the room was simply empty until he realized he was facing Emptiness. And she was together with her old friend Silence.
Emptiness was beautiful, totally different from Nothingness, that the man had met before. Emptiness had an infinite potential, while Nothingness was the end of the road.
Silence created the space that allowed Emptiness to show the infinite ways leading to the future.
The man sat cross-legged on the floor and watched Emptiness for a long time, while Silence cleaned his soul.
When he left the room he knew himself and he knew what he wanted to do. He smiled and went away.


Quem escreve em inglês pode gostar de seguir os links indicados acima.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

À atenção de arquitectos, engenheiros e público em geral

Uma empresa de engenharia que entende que a cultura faz parte do seu universo.
A revista Betar - Artes&Letras materializa essa preocupação.
Este pdf é o número de Setembro passado. Se forem à página 9 encontram um miniconto meu, já aqui publicado, com outro título, em 2009...




domingo, 8 de setembro de 2013

Uma carreira matemática

Travar conhecimento com os "números primos" foi para Joaquim Silveira uma revelação! Nesse instante descobriu que queria fazer da Matemática a sua vida... E assim foi! Licenciatura, mestrado, doutoramento, investigador na Universidade de Princeton...
E da sua produção científica, publicada nas revistas mais reputadas, foram saindo os "números tios" (em bom rigor "tio e sobrinho"), os "números cunhados", os "números pais e filhos" (os "números adoptivos" foram um caso particular destes, desenvolvido por um seu aluno de doutoramento) e esta sua actividade culminou com a generalização que veio a ser formalizada no "Teorema dos números ascendentes, descendentes e colaterais até à ordem n".
Na cerimónia em que lhe foi atribuída a Medalha Fields, celebrando o facto de ter fundado um novo ramo da Matemática, que ficou conhecido como "Aritmética Familiar", a felicidade de Joaquim Silveira era no entanto toldada por uma pequena mácula: o seu filho, recém-entrado na Universidade, tinha ido estudar Direito... porque detestava Matemática!

sábado, 7 de setembro de 2013

DO TEMPO FRAGMENTADO

Relatório de diagnóstico sobre a grave disfunção temporal detectada na periferia da galáxia, enviado ao Contemplador dos Fluxos Galácticos pelo afinador temporal destacado para o planeta Terra.



Sereno Contemplador


Desejo a Vossa permanência por muitas rotações galácticas.

Como sabeis, fui enviado a este sistema em virtude de graves distorções no continuum temporal detectado na sua vizinhança. A perturbação era originada no 3º planeta, o único habitado; seguindo a aproximação padrão, colocámo-nos em órbita e escolhemos para inspecção directa dois locais com valores limites da densidade populacional: o que na terminologia local é designado como uma pequena aldeia e uma grande cidade.

A observação directa teve lugar, como habitualmente, através da entrada num elemento da população, seleccionado aleatoriamente pela nave de acordo com critérios pré-estabelecidos, avaliando o seu comportamento racional e emocional. Esta monitorização não é detectável pelo hospedeiro e deve ter lugar, sempre que possível, de forma não interferente. Em caso de necessidade, o observador pode controlar totalmente as acções do hospedeiro, fazendo um by-pass à camada superior do sistema nervoso. O hospedeiro apenas fica com uma amnésia localizada, respeitante ao período em que foi controlado. Este procedimento não se revelou necessário na operação aqui relatada.

Serão em seguida descritas as duas experiências a que procedemos, com os comentários destinados à avaliação sumária da situação.

Na primeira experiência, o hospedeiro seleccionado foi um agricultor: Esta constitui uma ocupação muito frequente nas zonas menos povoadas e consiste em fazer crescer biomassa vegetal, utilizando o solo como substrato.
No momento do contacto, o hospedeiro conduzia um veículo, um tractor, com o qual lavrava um campo próximo da aldeia. Embora o dispositivo de accionamento fosse descontínuo, isso não afectava o hospedeiro de forma detectável.
A certa altura, avaliou a altura do Sol acima da linha do horizonte, encostou o tractor e desligou o motor. Apeou-se e começou a andar em direcção à aldeia. Da direcção desta veio uma sequência de sons metálicos, que despertaram no hospedeiro um sentimento de satisfação com vários cambiantes, difíceis de destrinçar para um contacto ainda na fase inicial.
Chegou a casa próximo da hora da alimentação. Esta é uma ocasião caracterizada por um certo ritual. Alimentos de diversos tipos são colocados sobre uma mesa para serem ingeridos pela família sentada à volta.

Finda a refeição, o hospedeiro foi sentar-se no alpendre, tirou do bolso um objecto constituído por um tubo fino ligado a um pequeno vaso, onde colocou umas ervas secas a que deitou fogo. Pelo tubo fino aspirava o fumo que depois libertava para o ar, e com um prazer sereno ali ficou a fumar, observando o pôr-do-sol. Os seus pensamentos deslizavam, suaves, com um fluir ditado por ritmos naturais: pintar a casa no próximo Verão, trocar o velho tractor depois da colheita. O seu tempo era um tempo primevo, calmo, sem tensões; mesmo o relógio que a certa altura foi buscar ao prego onde estava pendurado pela corrente e que depois acertou cuidadosamente pelas badaladas da torre da igreja, embora sendo uma máquina destinada a cortar o tempo, não era sentida como tal, mas sim como um objecto de adorno, cuja visão invocava a festa do dia seguinte, onde o levaria no bolso do colete preto, e o seu pai, já desaparecido, a quem pertencera.

Após este breve levantamento, foi decidido passar à segunda experiência: e embora já estivesse à espera de situações aberrantes, em função do que os nossos sensores temporais haviam assinalado, devo dizer que só o treino intensivo a que nós, afinadores temporais, somos submetidos, fez com que conseguisse suportar a experiência.

O meu hospedeiro era desta vez um gestor, isto é, um indivíduo responsável por um grupo de empresas, entidades funcionais do sistema económico, envolvendo pessoas e equipamentos.

O tempo era, para este homem - e verifiquei depois para a generalidade dos habitantes da grande cidade - dividido em pedaços, por sua vez subdivididos, por vezes ainda subdivididos, e todas as actividades, do despertar ao adormecer, eram controladas por essas divisões. Oficialmente, o tempo de uma volta completa do planeta em torno de si próprio é dividido em 24 partes (horas), divididas por sua vez em 60 partes (minutos), por sua vez divididos em 60 segundos. Existe uma obsessão em que qualquer actividade seja executada no tempo mais curto possível.

O dia de trabalho do meu hospedeiro era dividido em pequenas fatias, onde eram arrumadas as reuniões que tinha, os telefonemas que tinha que fazer, as cartas a ditar; na parede, vários relógios indicavam a hora local em diversas outras cidades do planeta, donde vinham e para onde eram enviadas mensagens. Diversos telefones tocavam, pessoas atendiam, respondiam ou passavam a informação ao meu hospedeiro, que tomava uma decisão a esse respeito.

No meio desta loucura de múltiplas descontinuidades, senti que havia uma preocupação no espírito do meu hospedeiro: precisava de comprar um presente de aniversário para a mulher. Consultou a agenda na sua mesa de trabalho e verificou que tinha um período de meia-hora sem nenhuma marcação. Chamou um dos colaboradores e disse-lhe: "Vou sair durante meia hora; se houver alguma coisa realmente importante, liguem para o telemóvel."

Tomou o elevador e saímos ao nível da rua. Milhares de pessoas caminhavam em todas as direcções, olhando com frequência os relógios que traziam ao pulso, conduzindo automóveis, entrando em autocarros, precipitando-se para as entradas do comboio subterrâneo.

O meu hospedeiro seguiu ao longo do passeio, e entrou subitamente num local que foi para mim um súbito choque: à nossa volta, centenas, milhares de máquinas pequenas, grandes, de todos os tamanhos, fragmentavam o tempo, ora ponteiros que ao percorrer mostradores cortavam pequenas fatias, ora visores luminosos onde os números se sucediam, indicando os segundos, décimos, centésimos...

Verifiquei então que se tratava de um local onde se podiam comprar relógios e o meu hospedeiro havia entrado lá porque pretendia oferecer um desses objectos à mulher... Foi de facto um suplício ter que estar ali, assistindo ao múltiplo retalhar do continuum temporal, enquanto ele escolhia. Terminada a transacção, saímos finalmente para a rua onde, embora o ambiente de loucura fosse evidente, não o era de forma tão concentrada como dentro da relojoaria.

Após esta breve descrição dos dois contactos havidos e em consequência do estudo multivariado realizado posteriormente, submeto a Vossa Serenidade a seguinte linha de actuação:


1. Repartição da população do planeta em aglomerados populacionais com o máximo de mil unidades cada, com tratamento subliminal por forma a assegurar que este limite não será ultrapassado. Só desta forma será possível manter a epidemia de agressão temporal sob controlo permanente.

2. Quanto aos aglomerados actualmente acima deste limite, existem 2 alternativas: ou a sua eliminação pura e simples, ou a dispersão dessa população pelas zonas rurais por forma a atingir o objectivo do parágrafo anterior.


Vossa Serenidade certamente deslizará para uma decisão sintonizada com os padrões galácticos.



Ass: O afinador temporal enviado ao planeta Terra

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Ghost writing

Eleutério Silva - nome fictício, já perceberão por quê - escrevia contos curtos. Mais, era um óptimo escritor de contos curtos. Costumava publicar os seus textos na Net, e ficava satisfeito quando recebia reacções positivas, desde um simples like no Facebook até comentários, por vezes extensos, no seu blogue.

Havia um tipo de comentários que o deixavam extremamente satisfeito e era quando o leitor dizia: "Gostaria de ter escrito este conto!".

Foi este género de frase que colocou a mente de Eleutério numa linha de raciocínio que moldou definitivamente o seu futuro.

Foi ao Google e à Wikipédia, pesquisou "ghost writer", e ficou surpreendido perante a quantidade de casos em que escritos de uns aparecem atribuídos a outros. Das novelas de Tom Clancy às memórias de Hillary Clinton, da autobiografia de Reagan a algumas encíclicas papais... E não só na literatura: Mozart escreveu peças que mecenas endinheirados fizeram passar por suas...

Lembrou-se também de um filme que tinha visto há muitos anos em que Woody Allen actuava como autor de textos que eram na realidade produzidos por escritores impedidos de publicar por estarem na lista negra do macartismo.

Eleutério meditou durante uns dias sobre a problemática da autoria e do seu reconhecimento. Quando emergiu dessa meditação tinha um business plan que passou a executar.

Enviou emails individuais aos seus leitores, anunciando a venda, por um preço módico, de contos curtos. A venda seria estritamente confidencial e o comprador poderia seguidamente publicar o conto como sendo da sua autoria. Eleutério ficou surpreendido com a adesão ao seu projecto. E começou a ganhar uns euritos.

Ao fim de algumas semanas aconteceu o expectável; vários leitores interessados em comprar o mesmo conto. Eleutério fez um pequeno leilão entre os interessados e o conto foi vendido pela melhor oferta. E como isso foi acontecendo com alguma frequência, os proventos de Eleutério foram aumentando.

Alguns meses se passaram e Eleutério tomou consciência que o mercado português era muito reduzido e que a expansão da sua actividade só seria possível com a internacionalização. Novamente abordou o problema de forma muito profissional. Embora o seu inglês já fosse bastante bom, procurou um curso com incidência particular na escrita de textos criativos e frequentou-o, com muito bom aproveitamento. Começou depois a enviar contos para todos os sites que encontrou que publicassem contos curtos. Usando agora os leitores desses sites, reproduziu no mundo da língua inglesa o que tinha feito no mercado português, mas numa dimensão incomparavelmente superior.

Eleutério vive hoje confortavelmente, gerindo o seu negócio e dirigindo o trabalho da equipa de ghost writers -  todos eles naturalmente sujeitos a um acordo de confidencialidade - que entretanto foi tendo que juntar para responder ao aumento de procura do mercado. O apartamento em condomínio fechado onde vive na cidade, a casa na praia, o BMW com menos de um ano e as contas em diversos bancos são o resultado desta sua actividade.




E estimado leitor, quem sabe se o conto que acabaste de ler não saiu do teclado de Eleutério ou de algum dos seus contratados? Quem sabe?


Dedicado ao José Eduardo Lopes, que me enviou o ebook "Microescritas", que tenho estado a tomar lentamente, para evitar uma overdose de microliteratura, muito difícil de tratar...

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Acta da reunião do júri do concurso literário “Palavras nunca lidas”

O meu conto com o título acima foi agora republicado no Nanozine 9

domingo, 7 de julho de 2013

O TESOURO

Era sabido por todos que Khalil El-Amin, o bisavô do actual Sultão, tinha mandado construir nos jardins do palácio um Pavilhão onde, era voz corrente, estava guardado um tesouro.
Na sala do trono havia uma caixa com incrustações de madrepérola que, toda a corte dizia, continha a chave do Pavilhão. Na tampa da caixa tinham sido gravadas instruções para só ser aberta no dia em que passassem cem anos sobre a morte de Khalil.
Nesse mesmo dia, a caixa foi solenemente transportada para a frente do Pavilhão, onde tinha sido erigida uma tenda para albergar o Sultão e a corte mais próxima.
Aberta a caixa, uma reacção de surpresa percorreu todos os que assistiam. Na caixa não havia nenhuma chave, mas um pergaminho onde estava escrito:
“Não forçareis a porta, nem usareis chave para a abrir.”
O Sultão consultou o seu círculo de conselheiros, que concluiu que a solução do problema estaria provavelmente na utilização de magia. E logo foi publicado um édito, proclamando que o Sultão daria metade do tesouro guardado no Pavilhão àquele que conseguisse abrir a porta.
E muitos magos vieram de todas as províncias do sultanato, mas a porta manteve-se inamovível a todos os encantamentos contra ela pronunciados. E todos os magos e feiticeiros, humilhados, foram forçados a desistir.
O Sultão decretou então que qualquer súbdito teria direito a tentar abrir a porta. Mas quem se atrevia, depois de poderosos magos terem falhado? E a multidão em torno do Pavilhão mantinha-se expectante.
Foi então que uma voz se ouviu: “Eu gostaria de tentar, oh Comandante dos Crentes!”
E um rapaz pobremente vestido furou por entre a multidão e aproximou-se até uma distância respeitosa do Sultão, mantida pelos soldados da guarda pessoal.
“Como te chamas?”, perguntou o Sultão.
“Ali-Babá, Vossa Alteza”, disse o rapaz fazendo uma vénia.
“Qualquer um dos meus súbditos pode tentar. Avança!”
O rapaz foi a um arbusto que florescia junto da porta do Pavilhão e cortou um raminho. Limpou-o das folhas, introduziu o raminho na fechadura da porta, torceu para um e outro lado e ao fim de poucos segundos, empurrou a porta que, para espanto de todos os presentes, se abriu suavemente sem ruído.
Ali-Babá recuou, virou-se para o Sultão e com uma vénia, convidou-o a entrar no Pavilhão.
“Nem vou perguntar-te onde adquiriste a perícia necessária para o que acabas de realizar”, disse o Sultão ao rapaz, antes de transpor a porta.
Já dentro, nova surpresa. O interior do Pavilhão, constituído por um único compartimento, estava essencialmente vazio, apenas com uma mesa sobre a qual se encontravam duas vasilhas seladas e um livro. E um rolo de pergaminho.
O Sultão entregou o pergaminho ao grão-vizir para que o lesse. E este leu:
“Não era provavelmente o que esperáveis, mas é este um tesouro maior que qualquer outro. Aqui dentro tendes água, trigo e um livro. Água, Comida e Conhecimento. Existirá maior tesouro na face da Terra?”
O Sultão dirigiu-se à multidão: “Sábias palavras as do meu bisavô.”
Falou depois para Ali-Babá:
“Permite-me que guarde o livro que pertenceu ao meu antepassado. Poderás ficar com o resto do tesouro.”
O rapaz rompeu os selos da vasilha de água, levou-a à boca e bebeu longamente. Pegou depois na vasilha de trigo e despejou-a até ao último grão num bornal que trazia ao ombro. Dirigiu-se então ao Sultão, ajoelhou, pegou-lhe nas mãos e beijou-as.
“Obrigado, oh Comandante dos Crentes!”
Levantou-se, fez outra vénia e afastou-se, misturando-se com a multidão.
Quando já estava suficientemente longe, abriu as mãos: na palma da mão direita brilhava um anel de ouro, com um enorme rubi, que minutos antes ornamentava o dedo indicador da mão esquerda do Sultão. Na outra mão de Ali-Babá refulgia uma pulseira de prata finamente trabalhada, ornamentada com granadas e safiras, que o Sultão usava no pulso direito em ocasiões especiais.
Ali-Babá olhou para os objectos, deu uma gargalhada, fê-los desaparecer numa das múltiplas algibeiras da sua túnica andrajosa e mergulhou nas ruas da kasbah, fervilhantes de gente, onde a sua presença se desvaneceu em poucos segundos…

segunda-feira, 17 de junho de 2013

"Prosa para embrulhar castanhas"

Há já muitos anos, José Carlos de Vasconcelos publicou uma crónica com o título acima, que comentava o facto de ter encontrado uma página de jornal com um texto seu a embrulhar uma dúzia de castanhas assadas que tinha comprado.
Lembrei-me disto porque participei recentemente num concurso para microcontos até 350 caracteres, cujos 20 melhores seriam publicados em pacotes de açúcar.
Os que enviei não estiveram entre esses 20 (oh, well...), mas como já estão libertos do "segredo de justiça" (o resultado saiu hoje), resolvi arejá-los aqui. E aqui ficam, sem mais preliminares.




O DESTINO

Era uma bala pacifista. Por mais de uma vez tinha tentado converter as colegas de carregador às suas ideias, mas sem êxito. E quando foi utilizada por um dos soldados do pelotão de fuzilamento, voou directa ao coração do condenado.
O destino controla as vidas e mortes de todos… mesmo de balas pacifistas.




A VIDA DOS FAMOSOS

Uma caneta de marca encontrou-se com um relógio seu conhecido numa festa onde estava a nata dos relógios e canetas.
“Aos anos que não te via! O que tens feito?”, perguntou o relógio.
“Dedico-me à Escrita, e tu?”
“Olha, vou passando o Tempo…”




O ENCONTRO

(Peça minimalista em 1 acto)

Palco despido de adereços. Luz branca, forte. Os actores entram um de cada lado do palco.
Ele: Mariana!!!
Ela: Joaquim!!!
Caminham um para o outro. A luz diminui lentamente enquanto cai o pano.

domingo, 21 de abril de 2013

Improbabilidades de Tempo Chuvoso

O Jorge Candeias acaba de publicar mais um ebook com o título acima, com contos aparecidos no site Infinitamente Improvável, e não só.
Pode ser feito o download aqui, nos formatos EPUB e MOBI. Tenho lá duas historinhas.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Antologia Fénix – Volume 1

O pessoal da Fénix Fanzine resolveu editar, em formato digital, uma Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia com o tema Livros.
É uma colecção de mini contos, disponível para download aqui, em pdf, epub e mobi.
Tenho lá uma troika de micros…

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Reunião do Confusofin

O conselho de ministros das finanças da Confusolândia tinha começado havia meia hora, e os ministros iam-se revezando na descrição das medidas de austeridade que já tinham implementado nos respectivos países.

Dizia um: "Depois da trigésima quinta visita da troika já tínhamos aprovado uma taxa sobre o ar respirado dentro das casas. Agora, na sequência da septuagésima sétima avaliação, privatizámos o ar público. A empresa que ganhou a adjudicação fornece máscaras com contadores de ar a todos os cidadãos, e o ar respirado é pago mensalmente por débito em conta."

Um murmúrio respeitoso ouviu-se à volta da mesa. Alguns ministros tomavam notas. Era sempre bom ter ideias em carteira para quando se revelassem necessárias.

Outro ministro avançou: "No meu país já temos profissionais a pagar para trabalhar. Fizemos uma campanha com fundos comunitários para os convencer que, se não exercitarem os seus skills de forma regular, ficarão em desvantagem quando surgir a oportunidade de regressar ao mercado de trabalho. E a resposta à campanha foi muito positiva!"

Sorrisos de aprovação dos participantes da reunião.

Havia já vários anos que os telemóveis tinham de ser deixados à porta, para evitar fugas de informação. Um assessor entrou na sala e anunciou: "Uma chamada telefónica para o ministro de Parvual."

O ministro levantou-se e foi à sala do lado para atender. Do outro lado da linha reconheceu a voz bem timbrada do seu primeiro-ministro.

"Senhor primeiro-ministro, já descrevi a nossa medida de fixação de taxas de desemprego por profissões, para manter os salários baixos. Alguns acharam que a taxa para engenheiros era baixa, e podia subir vários pontos percentuais, porque assim como assim já não temos praticamente indústria. Mas de um modo geral a medida foi muito elogiada."

"Este telefonema é precisamente sobre isso" – disse o primeiro-ministro. "Estivemos a apurar os últimos números, e com o último aumento que fizemos à taxa para economistas, de 30 para 45 por cento, ficaste de fora. Estás sem emprego. Portanto faz as malas, apanha um voo de regresso – em classe económica, porque como ainda não foste exonerado, ainda tens que dar o exemplo – e até amanhã!"

O ex-ministro das finanças de Parvual ficou a olhar sem ver a parede em frente, e pousou lentamente o telefone no descanso. Por alguma razão, mesmo com enoooorme esforço, não conseguia ver o seu afastamento como um mero dano colateral das políticas acertadas que o governo a que tinha deixado de pertencer estava a tomar para o desejado regresso aos mercados...

E muito menos como uma oportunidade...

quarta-feira, 10 de abril de 2013

O tempo escuro em que vivemos fez-me entrar em modo neo-realista. Quem não gostar pode passar ao lado...


O OUTRO, O PRÓXIMO

Manuel Joaquim, o encarregado da obra, observa, do 3º andar do prédio em construção, o estaleiro em baixo. Os homens executam os trabalhos que lhes foram distribuídos e até agora não houve desvios ao planeado.
 Um camião entra agora no estaleiro e Manuel Joaquim desce para receber a carga. São paletes de tijolos e caixas com placas isolantes para as paredes que vão começar a fazer. O camião vem equipado com uma pequena grua que levanta as paletes, uma a uma, e as deposita nos locais indicados pelo encarregado. Este assina a guia de transporte e o camião abandona o estaleiro.
É meio-dia e o trabalho é suspenso para almoçar. Os homens pegam nas marmitas que estiveram a aquecer na fogueira feita com tábuas, e dirigem-se para o telheiro, onde se instalam na mesa e bancos toscos. Um deles aparece com meia dúzia de cervejas que foi buscar ao café à esquina da rua, e começam a comer. A excepção é Ivan, o ucraniano, que se sentou num degrau um pouco mais longe, abre uma caixa donde tira uma sanduíche que vai comendo devagar, intercalando com goles de água de uma garrafa.
Manuel Joaquim suspira. É difícil o pessoal aceitar os estrangeiros, mas pelo menos tem conseguido evitar conflitos dentro da obra. E então o Raul, é lixado!
Dirige-se para o café onde habitualmente almoça, o dono já o conhece e a comida é gostosa, caseira, nada parecida com o “come-em-pé” na outra ponta da rua.
Quando regressa à obra, faltam poucos minutos para pegar no trabalho. Os portugueses estão ainda debaixo do telheiro, discutindo animadamente os jogos de futebol do domingo anterior, enquanto Ivan, sentado ainda no mesmo sítio, lê um livro.
O encarregado ouve Raul a resmungar:

terça-feira, 9 de abril de 2013

Agora que se tornou a discutir até à exaustão a matéria (adoro a utilização da palavra "matéria" no discurso mediático) do comentário televisivo, fui encontrar este texto escrito há cinco ou seis anos, inspirado numa rábula dos Gatos Fedorentos e nunca publicado.

O Professor

O Professor aparece à hora prevista. Traz como sempre as suas escolhas, criteriosamente escolhidas, e começa a lição.
Famílias inteiras sentam-se em redor dos televisores, porque o Professor fala sempre alguma coisa que interessa a cada um.
O desporto é uma das suas (inúmeras) especialidades: ténis para a classe média-alta, futebol para a população em geral (já foi capaz de comentar um jogo depois de declarar não o ter visto...), referências rápidas mas apreciativas ao campeonato nacional de caricas ou à final europeia de matraquilhos. Mas fala também de política, naturalmente, de cinema, teatro, renda de bilros e bordados de Castelo Branco para agradar às avozinhas, o preço do chicharro para enlevo das donas de casa, uma ou outra notícia necrológica (anunciar a morte de alguém que se encontra vivinho da costa convenhamos que não é para qualquer um)...
Não há assunto sobre o qual o Professor se reconheça incapaz de soltar umas palavras, muitas vezes enunciando três razões para as opiniões que emite: uma primeira, uma segunda e uma terceira, sublinhadas com o arregalar dos olhos, balouçar da cabeça e profusão de movimentos das mãos e dos braços.
E o Professor dá notas. Treze valores, quinze valores, onze valores... A palavra valores é sempre bem cheia, há que deixar no público a impressão indelével de que um professor ao classificar nunca se engana e nunca tem dúvidas. E o povo adora este frenesi classificativo, sobretudo quando o político na mó de baixo apanha uma má nota!
Depois é a vez dos livros, ou melhor, da enunciação dos títulos dos livros (falar em recensão ou crítica seria grosseiramente exagerado): uma imagem fugaz da capa, e cada livro é despachado a uma velocidade estonteante, com uma apreciação que pode assumir uma de quatro hipóteses. Primeira: “li e gostei”; segunda: “li e não gostei”; terceira: “não li mas gostei”; e finalmente a quarta : “não li e não gostei”. E imaginamos facilmente os responsáveis das FNACs e Bertrands a correr para as lojas encher as prateleiras, colando etiquetas amarelo fluorescente com os dizeres: “Recomendado pelo Professor”.

--- 000 ---

O pior de tudo isto não é o que fala, porque palavras leva-as o vento. O pior é que muitos daqueles que fielmente seguem as homilias ficam com a ideia de que um Professor universitário é aquilo: uma pessoa que fala sobre tudo, o que sabe e o que não sabe, com igual ligeireza e desenvoltura. Em suma, um “fala-barato”...
O que é lamentável porque, apesar das inevitáveis excepções, se trata de uma classe profissional que não merece ficar ligada a esse estereótipo!

Declaração de interesse: fiz parte da classe profissional supramencionada.


segunda-feira, 1 de abril de 2013

Em 2010, a editora Saída de Emergência publicou o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas, onde tenho uma contribuição. Hoje, durante a spring cleaning do disco do computador, encontrei outro conto que escrevi nessa altura, mas que então não chegou a ver a luz, e resolvi arejá-lo aqui. Assim como assim, é 1º de Abril...



DESEJO INCONTROLÁVEL DE SER DONO DO MUNDO (DIDSDDM)

Personae gigantismus; Mundus dominium voluntas


Primeiro caso conhecido

Perde-se na noite dos tempos o registo do primeiro caso desta doença. Battleshout & Littleone (1953) propuseram a teoria de que o factor que faria despoletar a doença nas populações pré-históricas era o som de um fémur a partir qualquer outro objecto mais frágil; esta teoria foi liminarmente rejeitada por alguns participantes na conferência que também tinham visto o filme “2001 – Odisseia no Espaço”. Na sequência deste incidente, aqueles autores foram acusados de plágio e os seus nomes retirados do “Who’s Who in Medical Research”.
Assim os primeiros relatos da doença – ainda não reconhecida como tal – surgem no contexto das vidas dos grandes líderes políticos, militares e religiosos. As fases terminais da doença causam fascínio no público em geral, sobretudo pela grandiosidade das consequências. As múltiplas guerras que têm ocorrido ao longo da história humana, conquistas, colonizações, genocídios, são um mostruário dos efeitos desta doença que tem atacado os líderes das nações e povos envolvidos, e que só recentemente começou a ser reconhecida na comunidade médica. 


Sintomas

Os sintomas são caracterizados por uma certa variabilidade entre os doentes afectados, mas existe uma tipologia com alguma consistência:
a) Exibição obsessiva e ostensiva de manifestações de poder pessoal.
b) Discursos agressivos, sobretudo se efectuados perante multidões.
c) Gosto acentuado por símbolos e rituais (medalhas, condecorações, desfiles, tomadas de posse, etc).
d)  Forte tendência para atribuir a outros a culpa de tudo o que de mau acontece. Esses outros pertencem em geral a uma minoria étnica ou política.
e) Prazer evidente na humilhação e punição de subordinados.


História

Considerava-se inicialmente que só pessoas colocadas em cargos de topo nas organizações de que faziam parte podiam ser afectadas por esta doença. Isto tornava muito difícil a obtenção de dados objectivos, porque qualquer estudo médico pressupõe um acompanhamento de perto do doente a ser estudado, e a proximidade de doentes na fase terminal desta doença constitui um factor de risco pessoal para qualquer cientista que tente realizar este tipo de investigação.
Apesar disso, muitos estudos foram dedicados a doentes famosos como Gengis Kan, Átila, Staline, Hitler, Pol Pot, para só mencionar alguns, não tanto por observação directa dos pacientes, pelas razões já expostas, mas através de análises das consequências dos seus actos. A título de exemplo, uma pesquisa no Google para “Hitler” fornece mais de 30 milhões de referências e para “Stalin” mais de 11 milhões.
Todavia, o artigo seminal de Sharpeye & Deepthink (1979) veio demonstrar que o DIDSDDM está presente de forma endémica na população humana, e que toda a situação de poder – por reduzido que seja esse poder – dá lugar ao aparecimento de fases mais ou menos benignas de manifestação da doença.
São conhecidos os comportamentos arbitrários de chefes intermédios em qualquer cadeia hierárquica, que levam muitos observadores, por falta de enquadramento teórico, a confundi-los com o comportamento sádico, quando são na realidade sintomas – não identificados – característicos do DIDSDDM.
Mesmo em indivíduos desprovidos de qualquer poder – falamos aqui de subordinados no nível mais baixo de uma escala hierárquica – a doença encontra-se latente, o que é manifesto em frases do tipo “Ai se eu mandasse!...” emitidas com manifesto desejo de que essa situação se pudesse concretizar.


Tratamento

No passado recente, os efeitos sentidos da arbitrariedade de muitas chefias levou ao surgimento de uma escola de medicina radical que propunha simplesmente a eliminação dos doentes com DIDSDDM. Esta escola, inspirada por algumas correntes anarquistas, ficou conhecida pelo seu slogan mais polémico: “Chefe bom é chefe morto!”.
No entanto, o mainstream da prática médica é actualmente bem mais moderado. Numa fase inicial da evolução da doença, o paciente pode ser tratado retirando-lhe o poder que lhe foi conferido pela hierarquia. É prática aconselhada que esta acção seja súbita, porque a perda gradual do poder pode tornar os sintomas mais agressivos.
Este tratamento provoca em geral num prazo relativamente curto o desaparecimento dos sintomas. Pode ser necessário providenciar ao doente acompanhamento psicológico, pois a perda de poder – ainda que um poder minúsculo – pode ser acompanhada de efeitos secundários que se caracterizam por sintomas que são quase simétricos dos sintomas do DIDSDDM. Uma das razões pela qual muitos clínicos prescrevem apoio psicológico tem a ver com várias acções de má prática clínica levadas a tribunal por doentes que desenvolveram sintomas de privação do poder particularmente fortes.
Os sintomas agravam-se à medida que o paciente sobe os degraus da hierarquia. Na fase terminal da doença – quando ataca chefes políticos, religiosos ou militares – a única forma de cura corresponde ao confinamento do paciente a um espaço limitado, ou à sua eliminação física.
A primeira forma de tratamento não é 100% eficaz, porque não é irreversível: factores diversos podem contribuir para fazer cessar o confinamento do paciente, e nesse caso os sintomas reaparecerem de forma muito mais violenta. Quanto à eliminação física, por vezes tem acontecido de forma natural, outras tem sido provocada. O problema é que muitas vezes os agentes desta eliminação estão eles próprios afectados pelo DIDSDDM. Daí que seja uma opinião partilhada pelos especialistas que a erradicação total desta doença é um objectivo utópico.


Referências

Battleshout, A.B. & Littleone, Y.Z., 1953, An explanation for the appearance of the Mundus dominium voluntas desease, Actas do XXIII Congresso das Doenças Raras ou Infecciosas, vol. IV, pg. 365-372.
Sharpeye, I. & Deepthink, S., 1979, Must a chief be a sick person? – Some Personae gigantismus case studies, International Journal of Psychological and Sociological Pathologies and Chiefology Studies, 3-179. 

terça-feira, 19 de março de 2013

Benvindo ao nosso hotel...

O site A Irmandade, referido no post anterior, lançou um desafio para contos até 3000 palavras, inspirados pela imagem abaixo. Segue-se a minha contribuição.


 Benvindo ao nosso hotel…


O terapeuta de casas estava no parque da cidade, sentado num banco, à minha espera.
- Pedi-lhe para nos encontrarmos aqui para podermos conversar à vontade, longe de qualquer das IAs do seu hotel. Elas são muito solidárias… Vou também precisar de gravar esta conversa, como informação de base para o meu trabalho.
Perante o meu sinal de concordância, prendeu um botão na lapela do meu casaco e disse:
- Conte-me então o que se passou…
- Como certamente sabe, em hotéis como o nosso, o cliente quando faz uma reserva envia o seu perfil, que inclui todo o tipo de preferências, coisas que gosta e não gosta, de forma que a IA do quarto consiga satisfazer qualquer desejo seu, ainda que apenas sugerido.
O terapeuta manteve-se calado, e continuei:
- Começámos a perceber que se passava algo de estranho quando o quarto 35 serviu a um hóspede um uísque com água lisa natural, quando no perfil do cliente estava bem explícito que bebia sempre com duas pedras de gelo e água gaseificada. O cliente foi simpático, aceitou as nossas desculpas e não accionou a cláusula de indemnização, mas sofremos um susto e tanto, e ficámos de olho naquele quarto…
- Mas depois desse registámos outros incidentes: um desvio superior a 5 ºC na temperatura da água do banho no quarto 15, um roupão de banho vermelho quando o cliente gostava de verde no quarto 72, um pequeno-almoço com bacon para um cliente vegetariano no quarto 28, álcool servido a um cliente muçulmano no quarto 53… Neste caso tivemos mesmo que pagar a indemnização!
- A última aconteceu hoje de manhã. Os espelhos nas casas de banho não são verdadeiros espelhos, mas existe uma câmara através da qual a IA capta a imagem do hóspede, que é processada, sendo depois afixada no ecrã. O hóspede do quarto 81, quando olhou para o espelho, viu uma cara que não era a sua. Imagine o pandemónio! O cliente saiu do hotel numa fúria, ameaçando que ia direito ao seu advogado para nos pôr um processo!
Tive que parar um pouco, porque ainda sentia nos ouvidos os berros do cliente.
- Como gerente do hotel preciso de resolver esta situação rapidamente. A divisa do nosso hotel é “Se não se sentir totalmente como em casa, somos nós que lhe pagamos!”. Está a ver que este estado de coisas é insustentável!
- Muito bem. Vou pedir à minha secretária que reserve esse quarto para mim. Vou aparecer esta tarde no seu hotel.
E com isto o terapeuta levantou-se do banco e afastou-se. Regressei ao hotel, preocupado.

------- X --------

Tentei fazer com que o check-in do terapeuta fosse como o de qualquer outro cliente. Subi com ele até ao quarto 81 e entrámos. Ele ligou uma Tablet que trazia e arrancou com o que me pareceu um programa de diagnóstico da IA.
Os seus dedos deslizavam velozmente na placa, e o quarto pareceu começar a reagir, com flutuações no nível da iluminação, e um zumbido surdo que cresceu em contínuo, depois baixou, e finalmente estabilizou num padrão pulsatório.
O terapeuta abanou a cabeça de modo afirmativo.
- A primeira parte já está! Neutralizei as barreiras de protecção e desliguei os sensores. Já podemos falar à vontade. Agora vamos sondar mais em profundidade…
Entrou na casa de banho e em frente do espelho, começou de novo a usar a Tablet. O espelho mostrou um rosto.
- Foi o último cliente que utilizou o quarto – informei eu.
A face foi substituída por outra, e essa por outra, e assim sucessivamente, mas cada rosto que aparecia vinha deformado, alguns de forma totalmente grotesca, de modo que a sucessão de rostos fazia lembrar uma galeria de monstros. Um assobio cada vez mais agudo ia acompanhando a sequência de imagens. Subitamente o som parou, e o ecrã ficou coberto por um mosaico, sendo cada pequeno elemento um dos rostos previamente mostrados.
Então do centro começou a alastrar a imagem de uma nova face, que foi crescendo até ocupar quase toda a superfície. Um rosto anguloso, os olhos fixos, deixando ver através de uma semi-transparência o mosaico sobre o qual tinha crescido.
- Este é o homem que a treinou. Está sempre localizado na camada mais profunda, é a primeira face que encontram quando são activadas – explicou o terapeuta. Parou uns segundos, deslizou os dedos na Tablet e continuou:
- Ficou catatónica. Já não é possível recuperá-la. Terá de ser enviada para eutanásia.
Sentia-me como se me tivessem batido!
- Mas isto aconteceu por quê? E logo no meu hotel…
- Isto é mais frequente do que se julga. Estas IAs foram desenvolvidas para casas familiares, onde elas se identificam com os habitantes da casa. Mas aqui estão sempre a mudar de habitante, isso causa-lhes muitas vezes problemas nos algoritmos de identificação e nos circuitos de empatia…
- Há algum tempo fiz terapia profunda a uma IA de hotel cujos sintomas eram semelhantes aos desta. O fabricante queria saber o que se passava para eventualmente alterar os protocolos e procedimentos de fabrico. Quando explorava uma das camadas mais profundas ela teve um desabafo violento: “Este trabalho no hotel faz-me sentir uma prostituta!”.
- Mas o que é que se pode fazer?
- Aconselho a fechar o hotel durante uns dias, alegadamente para obras. Todas as IAs têm de ser recondicionadas. A minha experiência diz-me que quando surgem problemas em dois ou três quartos isto assume características virais e propaga-se rapidamente a todos os outros…
Suspirei fundo, e senti saudades do tempo em que comecei a trabalhar, há já uns quantos anos, em que nos hotéis os hóspedes eram atendidos por pessoas…

Noosfera

O site brasileiro A Irmandade - Escritores de Literatura Fantástica, acaba de republicar o meu conto Noosfera. Agradecimentos devidos a Afonso Luiz Pereira, um dos administradores do site.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Como afinal Fausto não vendeu a alma ao Diabo (mas esteve quase...)

Dedicado ao Luís e aos restantes tertulianos das sextas...

No seu gabinete situado no topo do Departamento que dirige, Fausto, sentado frente ao computador, pesquisa o ciberespaço à procura de uma solução para o problema que atormenta o seu espírito de manhã à noite: descobrir uma forma de parar a inexorável caminhada para o caos final. Sim, Fausto procura a eterna juventude.
Não encontra respostas na Biologia, nem na Física, muito menos na Teologia ou na Metafísica. Mas continua incansável a sua busca incessante, para a qual tem desde há poucos dias um novo estímulo: viu Margarida, a nova estudante de doutoramento, atravessar a correr o relvado em frente ao edifício, no seu jogging diário, e ficou apaixonado pela graciosidade dos seus movimentos e pela perfeição do corpo da jovem.
Naquela noite, Fausto sente-se particularmente inquieto, a sua pesquisa não conduz a qualquer resultado e, num extremo de desespero, invoca o Senhor das Trevas.
Há um clarão que ilumina o gabinete com uma luz cegante e quando Fausto abre os olhos tem à sua frente uma criatura sorridente que, fazendo uma vénia, se apresenta:
- Mefisto, ao vosso serviço! Posso oferecer-vos a eterna juventude a troco de uma insignificante assinatura neste papel.
Nas mãos de Mefisto tinha subitamente aparecido uma folha escrita e uma caneta MontBlanc, já sem a tampa.
Fausto sempre ouviu dizer que o diabo sabe muito porque é velho, mas ele próprio também já não é novo. Assim, resolve questionar o seu visitante:
- E estás certificado segundo a norma ISO 10006? Inscrito na Ordem dos Notários, com capacidade para formalizar contratos de compra e venda de almas?
Mefisto hesita, e Fausto insiste:
- Em suma, como sei que tu és quem dizes que és?
Nessa altura um novo clarão ilumina o gabinete, o que Fausto pensa estar a tornar-se algo repetitivo. Existe agora um evidente cheiro a enxofre, e diante de Fausto está uma segunda criatura, parecida com a primeira mas maior, da qual emana uma aura de maior autoridade. Com uma voz que é como um trovão rolando, o visitante recém chegado diz:
- Mefisto Júnior, o que fazes aqui?
- Eu... eu... - gagueja o Júnior.
- Sabes que só depois de frequentar a unidade curricular "Relações com espécies inferiores" é que estás autorizado a ter contacto com humanos! Vais ficar de castigo na nuvem de Gabriel e depois falamos.
- No céu não, pai, por favor, no céu não!
- Silêncio! Já daqui para fora!
A voz ressoa de tal modo que faz tremer as estantes carregadas de livros. Mefisto Júnior desaparece numa nuvem de fumo.
- Voltando então a discutir negócios... - diz Mefistófeles, virando-se para Fausto com o melhor dos seus sorrisos.
- Um momento – diz Fausto – as tuas credenciais.
- Credenciais?
- Sim, um documento passado por uma autoridade superior que ateste quem tu és.
- Autoridade superior?
Fausto aponta calma e lentamente com o dedo indicador para cima. Mefistófeles não quer acreditar.
- Ir pedir-Lhe um atestado? A Ele? Nem pensar!
E desaparece com um enorme estrondo.
O cheiro a enxofre é agora mais intenso. Fausto vai abrir a janela para arejar o gabinete.

Fausto recorda-se de um professor que teve na universidade, e da forma como ele resumia as duas principais leis da Termodinâmica. Primeira lei: Nunca podes ganhar. Segunda lei: Não podes sequer empatar. Então a única solução é apenas tentar retardar a degradação.
Deixa de fumar.
Começa a fazer dieta.
Dá início a exames médicos regulares.
Passa a ir diariamente ao ginásio.
Mas continua a suspirar sempre que vê passar Margarida a fazer jogging...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Crop Circles

Uma história minha com o título acima foi agora republicada no site da International Speculative Fiction.
Uma versão em português da mesma história, tinha sido publicada em Dezembro na Dagon nº 4.
Um agradecimento ao Roberto Mendes, editor de ambas as publicações.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Querido Líder

A dor nos pulsos, não muito forte, mas incómoda, fez-me abrir os olhos. Isso e o cheiro pestilento, a fezes e urina. Olho em volta; estes tipos da Inquisição sabiam o que faziam. A simples visão desta masmorra aterroriza qualquer um. Aconteceria certamente comigo, se eu não soubesse que estou num sonho.
O espaço é circular, iluminado por tochas, que espalham uma luz amarelada e produzem sombras que flutuam. Presos pelos pés e mãos às argolas chumbadas na parede encontram-se vários homens e mulheres, acusados dos mais diversos crimes, a grande maioria dos quais certamente não cometeram. Na posição em que se encontram, podem observar os tormentos infligidos aos seus companheiros de infortúnio… Uma ideia brilhante!
A acústica da masmorra é perfeita. Quando um supliciado grita, a sua voz ressoa nas paredes e abóbada de pedra, e parece que o eco continua, mesmo depois de a pessoa torturada ter parado de gritar. Quando os gritos param, acima do crepitar dos archotes consegue ouvir-se o ruído dos ossos a serem partidos, ao que se segue nova série de gritos lancinantes.
No meio do recinto estão os aparelhos de tortura, onde os prisioneiros são sujeitos a uma diversidade de procedimentos, todos com o objectivo de arrancar uma confissão, maximizando a dor infligida. Cortar, arrancar, queimar, furar, esmagar, o único cuidado é fazer com que o torturado não morra, porque obviamente um morto não pode confessar nada. Há os carrascos, que não se podem queixar de falta de trabalho, um frade que sentado a uma mesa consulta os processos e escreve as confissões que sejam produzidas, e por vezes mais um religioso tentando forçar ao arrependimento algum herege mais contumaz.
Terei de falar com Malik depois de despertar. Será bom que tenha uma explicação para me fazer aparecer no sonho como prisioneiro. Poderia ter aparecido como o frade escriturário ou como um dos torturadores; obteria a mesma informação, mas aparecer como torturador dava-me muito mais gozo!
A rotina do processo é simples mas eficaz: um prisioneiro é solto das argolas na parede, conduzido a um dos aparelhos e preso a ele. Depois de torturado, o que pode durar mais ou menos tempo consoante as respostas que for dando (ou não) ao inquisidor, é levado para uma cela onde ficará aguardando nova sessão de tortura ou o auto-de-fé, e outro prisioneiro toma o lugar dele. E outro ainda é trazido de fora e preso à parede, para observar e ficar aterrorizado.
Já assisti à tortura de uma velha a quem partiram ambas as pernas, que foi levada por dois dos carrascos, as pernas inertes arrastadas pelo chão, um rapaz que ficou sem metade dos dentes e as articulações dos braços e pernas deslocadas, uma mulher jovem queimada com ferros em brasa…
Tirei algumas ideias interessantes sobre técnicas de interrogatório e está na altura de interromper o sonho. Dou início à rotina de acordar:

Do sonho à realidade,
do possível à verdade,
Três, dois, um, zero.”

Espero ver-me de novo sentado no laboratório na cave do palácio presidencial, com os técnicos à minha volta apressando-se a libertar-me dos cabos e eléctrodos que me ligam à máquina dos sonhos, como sucedeu nas experiências anteriores. Mas nada acontece, e continuo nesta masmorra fria, escura e mal cheirosa.
Repito na minha cabeça a litania: “Do sonho à realidade / do possível à verdade /Três, dois, um, zero.”
À palavra zero, sinto como um estalido no meu cérebro, mas em vez de despertar começo a ouvir a voz de Malik a ressoar na minha cabeça:
“Querido Líder” (é imaginação minha ou há um tom irónico na sua invocatória?)
“Está a ouvir uma mensagem que implantei no seu cérebro, para ser activada quando decidisse sair do sonho. Venho comunicar-lhe que houve uma pequena mudança de planos. A máquina onde foi ligado desta vez, embora parecida por fora com a máquina de sonhar que já tinha utilizado várias vezes, era na realidade uma coisa completamente diferente: era uma máquina de viajar no tempo!”
“Por outras palavras, Querido Líder, você não está a sonhar… foi efectivamente transportado para a masmorra da Inquisição. Por esta altura deve ter já assistido à tortura de meia dúzia de desgraçados, e se o conheço bem, deve ter pensado que alguns dos instrumentos poderiam ser úteis aqui nas masmorras do palácio presidencial. Deixe-me tentar adivinhar: o Potro? A Roda? A Virgem de Ferro? Que pena não poder conhecer a sua escolha…”
Como se atreveu ele a fazer isto? A mim? Não sabe que a mulher e o filho serão torturados até à morte à sua frente se me acontecer alguma coisa?
“Sei o que está a pensar, Querido Líder. Que eu, ao fazer isto, terei sacrificado a minha mulher e o meu filho. Mas eu vou-lhe explicar, para que até essa pequena satisfação desapareça do seu espírito. Com a máquina do tempo, viajei ao futuro, a um tempo onde a clonagem é corrente e fabriquei um clone… seu! Sim, um clone do Querido Líder! Idêntico nos mínimos pormenores. Assim, para os assassinos a seu mando, o nosso Querido Líder continua a dirigir este país. Irá nos próximos dias emitindo ordens – dadas por mim – que lentamente irão acertando o muito que há para corrigir. Aliás, já começou: a minha família já está confortavelmente em casa, e não na prisão abjecta para onde os tinha atirado.
Adeus, Querido Líder. Desejo-lhe uma boa estadia nesse local.”
A mensagem acabou. O meu cérebro ficou como vazio. Dois soldados vêm agora buscar o prisioneiro ao meu lado, para ser interrogado. Um deles olha para mim, abre a boca num riso de dentes podres e diz-me: “Não tenhas pressa, tu vais já a seguir”. Cospe-me na cara, resmunga “Feiticeiro do diabo!” e benze-se.
Fico à espera, imerso num desespero crescente… Dentro em breve virão desprender-me das argolas para ser interrogado…