segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Viagem no Tempo


“Os labirintos que cria o tempo (...)”

Terminada a sessão da oficina de escrita criativa, Carlos Neves fechou o moleskine, guardou a caneta e saiu da sala.
 “Viagens no tempo!”, pensava ele. “Estes tutores têm uma falta de imaginação! E eu com tanta coisa que fazer, como vou arranjar tempo para escrever um conto de 3 páginas sobre viagens no tempo. Já está tudo escrito sobre viagens no tempo!”
E com estes pensamentos sombrios, onde dominava a sensação angustiante da falta de tempo, Carlos ia caminhando em direcção à estação do Metro, passando em revista mentalmente todas as tarefas que o aguardavam quando chegasse à Faculdade: duas aulas para preparar, uma tese de mestrado e dois trabalhos finais de curso para ler, testes para corrigir... Ia ser uma semana infernal!
Chegou ao fim do dia cansadíssimo, e com um montão de tarefas ainda inacabadas. Jantou no restaurante que fica na esquina da rua onde mora, aceitando a sugestão do empregado - “a carninha à jardineira está muito boa, sotôr” - e empurrando a comida com uma cerveja.
Entrou em casa e esparramou-se no sofá da sala, sem se dar ao traba lho de ligar a televisão. Foi então que os seus olhos pousaram sobre o livro que tinha trazido de casa da tia Leocádia.
                 
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Aquela tia sempre fora o membro da família mais freak. Apaixonada por tudo o que cheirasse a esotérico, já tinha viajado até à India e ao Tibete, e andava sempre pelos alfarrabistas à procura de livros antigos sobre magia, ocultismo e coisas semelhantes. Quando era miúdo, Carlos adorava ir a casa dela, porque ela vestia umas roupas esquisitas e havia sempre uns objectos estranhos em cima das mesas e velas ou paus de incenso a arder. Era um sítio fixe!
Há cerca de 15 dias, desapareceu. Deixou de telefonar ao irmão, já velhote, que começou a ficar preocupado e contactou Carlos. Este foi com o tio a casa de Leocádia. Entraram e tirando algum pó sobre a superfície dos móveis, tudo parecia normal, até chegarem à cozinha. Aqui encontraram no chão de tijoleira um círculo com cerca de um metro de diâmetro feito com pedrinhas, no exterior do qual, e na direcção dos 4 pontos cardeais, estavam posicionados quatro pequenos castiçais onde pareciam ter ardido completamente as velas. E na bancada da cozinha havia um livro de capa preta de aspecto antigo.
O tio resmungava: “Esta Leocádia, sempre com a mania das magias e dos feitiços. Onde é que se terá metido?”
“Tio Januário, não se preocupe, a tia provavelmente foi viajar e não se deu ao trabalho de avisar, parece que não conhece a sua irmã, amanhã ou depois recebe um postal dela de Katmandu ou da Patagónia ou de outro sítio desses”, ia dizendo Carlos para sossegar o velhote.
Abriu o livro e verificou que as páginas estavam escritas à mão, numa caligrafia regular e bonita, que imediatamente reconheceu ser a letra da sua tia. A primeira página tinha um título, em gótico caligrafado: “Compilação de Feitiços”. Meteu o livro debaixo do braço e levou-o para casa.

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Carlos foi ao armário no canto da sala, pegou num copo de balão e serviu-se de uma dose generosa de brandy. Colocou no leitor de CDs o “Concerto para clarinete” de Mozart e sentou-se novamente no sofá. Bebeu um gole de brandy, pousou o copo e pegou no livro da tia Leocádia.
Começava com um índice, listando metodicamente os feitiços constantes do livro. Vagamente divertido, Carlos foi lendo uma longa sequência de feitiços, para fazer aparecer o sol num dia de chuva, para encontrar objectos perdidos, para eliminar o mau olhado causado por inveja, para influenciar outra pessoa numa reunião de negócios... E foi quando já estava a achar um pouco monótona aquela longa sucessão de receitas que Carlos chegou a uma linha que o fez parar: “Feitiço para voltar atrás no tempo sabendo o que sei hoje”.
Era a solução para os seus problemas, pensou Carlos. Recuando uns dias, uma semana seria bastante, teria tempo para fazer as coisas que se acumulavam com os prazos perigosamente curtos, entre elas escrever o estuporado conto sobre Viagens no Tempo.
Foi fácil encontrar o feitiço, porque a tia tinha paginado o livro, usando numeração romana (!), a meio do topo de cada página. E Carlos começou a ler:

No chão de pedra o círculo temporal
com 5 palmos através
desenharás com fuligem de queimar madeira.
Ao Norte e ao Sul porás sal;
Ao Este e Oeste porás cinza.
No centro te colocarás e não
poderás ter metal sobre ti.
Chamarás então as forças temporais
lendo a seguinte invocação
:
      Tempo que existes desde antes do princípio
      Tempo que existirás depois do fim
      Através de ti passa tudo o que se sente
      Leva-me para trás ____ voltas do Sol
      Mas só o meu corpo, não toques na minha mente.

Pareceu a Carlos uma receita fácil de executar. E resolveu passar à acção. Foi à lareira que tinha funcionado pela última vez na noite da passagem do ano, e recolheu alguma cinza, que guardou num envelope. Foi à cozinha e tirou o saleiro do armário onde guardava os temperos. Voltou à lareira e retirou três ou quatro fragmentos de madeira carbonizada. Levou tudo para o hall da entrada, única divisão do apartamento que tinha o chão de pedra, todas as outras tinham soalho de madeira, e a cozinha e casa de banho eram pavimentadas com mosaico. Tirou ainda da despensa um rolo de corda que tinha comprado para substituir a do estendal da roupa, substituição essa que constituia um dos seus projectos sucessivamente adiados.
Cuidadosamente mediu então cinco palmos de corda, que cortou. Dobrou esse pedaço de corda ao meio, e utilizou essa corda dupla como um compasso primitivo que lhe permitiu, usando um pedaço de madeira carbonizada, traçar no chão de pedra um círculo com o diâmetro requerido.
Foi ainda buscar uma bússola para localizar os pontos cardeais e lá colocou o sal e a cinza como escrito no feitiço.
Tirou as chaves do bolso, o relógio do pulso e o anel do dedo, e descalçou-se, não fosse dar-se o caso de as anilhas metálicas dos atacadores dos sapatos afectarem o processo. Verificou se estava tudo em ordem, pegou no livro, colocou-se no meio do círculo e o seu último pensamento antes de começar a ler a invocação foi que para, entre outras coisas, escrever um conto sobre Viagens no Tempo ia ele próprio viajar no tempo!
E leu a invocação às forças temporais, terminando com “Leva-me para trás sete voltas do Sol / Mas só o meu corpo, não toques na minha mente.”
Carlos não sentiu que alguma coisa se tivesse passado. Inconscientemente, estava à espera de luzes, barulho, nem ele sabia o quê.
Saiu do círculo, calçou-se com alguma dificuldade – doeram-lhe as articulações dos joelhos – e quando se levantou sentiu uma tontura. Além disso, ao passar a língua pelos dentes detectou uns intervalos estranhos.
Foi à casa de banho, e quando se olhou no espelho sobre o lavatório, sentiu um choque: aquela imagem não era ele! A cara cheia de rugas, o cabelo ralo e totalmente branco, e quando abriu a boca logo verificou a falta de vários dentes. Tinha envelhecido!
Carlos regressou à sala para se acalmar. Pegou novamente no livro da tia e leu com atenção o feitiço que tinha acabado de fazer, para ver se inadvertidamente teria falhado algum passo do procedimento. Mas não, tinha seguido tudo à risca. Foi então que reparou no canto inferior direito da página uma pequenina seta. Virou a folha e no topo da página de trás estava escrito:

Aviso muito importante!
O recuar no tempo afecta o delicado equilíbrio do mundo. Antes de voltar atrás no tempo, o praticante deve primeiro realizar um feitiço que proteja o seu corpo das consequências maléficas desse desequilíbrio provocado, fazendo essas consequências ser descarregadas sobre as almas do Inferno, a quem não fará grande diferença esse acréscimo nas penas.

E seguia-se o texto que devia ser lido com essa finalidade, e que Carlos já nem leu, porque obviamente não iria funcionar depois do recuo temporal!
Portanto as “consequências maléficas” do tal desequilíbrio tinham-no feito envelhecer uns quantos anos. Diabo de “delicado equilíbrio”!
Respirou fundo duas ou três vezes, e pegou novamente no livro, para continuar a ler o Indice. A tia Leocádia era completamente maluca. Tinha copiado feitiços como quem copia receitas de cozinha! Feitiços para fazer um pardal cantar como um rouxinol, para se tornar invisivel (este tinha um aviso que dizia ser o efeito limitado no tempo), para fazer desaparecer os cabelos brancos (não seria melhor uma visita ao cabeleireiro, pensou Carlos) e subitamente encontrou um título que dizia “Feitiço para viajar ao tempo que ainda não foi”.
Deve ser um processo para viajar ao futuro, pensou ele. Talvez eu possa avançar os 7 dias que recuei e reverter esta situação. A página era a LXIII, e Carlos começou a folhear o livro quase em pânico até chegar à página LXV; e a anterior era a LXII; e um calafrio percorreu-lhe o corpo enquanto lentamente se convencia de que faltava a folha correspondente às páginas LXIII e LXIV.
E de súbito, como num filme, reviu a cozinha da tia Leocádia, o círculo de pedras no chão, as velas queimadas, e a conclusão foi óbvia: a tia tinha de facto viajado, mas para o futuro. E tinha rasgado a folha do livro para que mais ninguém o pudesse fazer!
Carlos suspirou, e decidiu ir deitar-se. No dia seguinte teria que telefonar para uma clínica a marcar um check-up; não sabia quantos anos teria envelhecido, mas o estado dos seus dentes não pressagiava nada de bom. E teria de arranjar uma explicação plausível para o seu novo aspecto.
Raios partissem a tia Leocádia!

sábado, 22 de dezembro de 2012

Os anos cinzentos: ficar ou partir

Descrição de um episódio verdadeiro. Quem assistiu lembrar-se-á… Um exemplo das várias vidas de que era tecida a vida de um estudante do Técnico nos anos cinzentos…


Durante parte da minha vida de aluno do Técnico morei no Lar da Associação de Estudantes (hoje intitulado República A Desordem dos Engenheiros). Era uma experiência prática de auto-governo aquela que então tínhamos naquele 5º andar da Avenida Almirante Reis. Desassete estudantes de diversos cursos e anos, com diferentes origens geográficas e sociais, partilhando alegrias e tristezas, medos e esperanças. A minha formação foi certamente muito influenciada por todos os colegas com quem vivi aqueles anos, de muitos dos quais fiquei amigo para o resto da vida. E não é de estranhar que as ideias dominantes naquela casa fossem dos diversos matizes de esquerda.
(No 4º andar, logo abaixo de nós, era um lar de idosas da paróquia local. A coexistência era pacífica; sempre que fazíamos uma festa, onde se previa um nível de ruído superior ao habitual, lá ia uma delegação bater à porta das “velhinhas” pedir antecipadamente desculpa pelo incómodo que iríamos causar. E nunca tivemos uma resposta que não fosse: “Fazem bem, vocês são jovens, têm que se divertir…”. Em contrapartida, sempre que encontrávamos uma delas no rés-do-chão, com o cesto das compras, a olhar desconsolada para a porta do elevador com o letreiro “Avariado” – o que acontecia com bastante frequência – éramos nós que transportávamos o cesto até ao 4º andar. Um bom exemplo de convivência inter-geracional!)
Um dos residentes, L.F., já conhecia a polícia política – e a PIDE a ele, naturalmente. Não me recordo se tinha chegado a ir a julgamento, mas durante a sua detenção tinha sido submetido à famigerada tortura do sono durante 6 dias. Entre várias sequelas, tinha ficado afectado por insónias persistentes, só conseguia adormecer pelas seis ou sete da manhã, e dormia toda a manhã e parte da tarde. O seu "horário de funcionamento" era assim bastante diferente dos restantes utentes do Lar.
Por essa altura eu fazia parte do Coro da Academia dos Amadores de Música, ainda dirigido por Lopes Graça. Os membros do coro constituiam um conjunto bastante heterogéneo, alguns  licenciados, empregados de escritório, operários, donas de casa, alguns estudantes. E é precisamente numa noite de ensaio, na sede da Academia na Rua Nova da Trindade, que um desses estudantes, dirigente associativo na Faculdade de Ciências, me diz: "Conheces o L.F.? Pirou-se! Já está na Bélgica."
"O L.F.? Mas esse tipo mora lá no Lar!"
Não devo ter estado muito atento durante o resto do ensaio. Peguei o eléctrico 24 de volta, e assim que entrei no Lar chamei todos à sala e dei-lhes a novidade.
Dado que a informação era de confiança, chegou-se rapidamente a um consenso. Como se sabia que a PIDE visitava com frequência as casas de quem saía clandestinamente do país, era necessário descobrir se ele teria deixado alguma coisa no quarto que fosse necessário fazer desaparecer. E lá fomos passar revista ao quarto do L.F.
Do que estava à vista, nada de comprometedor. Alguns ensaios ou romances mais “subversivos” misturados com os livros de matemática, física e engenharia não seriam de molde a entusiasmar qualquer agente da PIDE que nos viesse fazer uma visita. Era o tipo de literatura que qualquer livreiro mantinha debaixo do balcão para venda aos clientes conhecidos. Até que abrimos a gaveta da mesa e demos com os restos do trabalho que o nosso colega tinha desenvolvido com vista à sua planeada saída do País.
Durante as longas horas de insónia, quando era em geral a única pessoa acordada na casa, L.F.  tinha dedicado a sua actividade a sucessivas tentativas de falsificação de um carimbo da PIDE. Como devido ao seu cadastro nunca lhe dariam autorização para sair do país, precisava passar a salto a fronteira portuguesa, mas ter no passaporte o carimbo de saída, para não ter problemas nas fronteiras seguintes.
No início tentou fabricar o carimbo em chumbo, que é um material dúctil e fácil de cortar. Usando como cadinho a tampa de uma lata de graxa para sapatos colocada sobre o bico do fogão, colocou lá dentro aparas de chumbo que fundiu com relativa facilidade. A ideia era usar a superfície do líquido, depois de solidificada, para "esculpir" o carimbo. Mas as impurezas que vem à superfície quando se fundem metais tornavam a superfície irregular, e a tentativa não teve sucesso. Soubemos mais tarde que ele tinha feito várias perguntas sobre o assunto a J.C., assistente de Metalurgia, que muito pedagogicamente lhe tinha fornecido a explicação completa do fenómeno, sem a mínima desconfiança quanto à finalidade das questões colocadas.
Não sabemos se terá feito outras tentativas, mas na gaveta encontrámos sinais da solução adoptada: dois passaportes com as folhas de identificação arrancadas, e cujas páginas tinham sido usadas para ensaiar os diversos carimbos que ele fora desenvolvendo. E a solução encontrada tinha tanto de simples como de engenhosa.
Tinha cortado em stencil – material ainda nessa altura muito usado como matriz para policopiar documentos – as letras e números do carimbo. Ao passar tinta pelo lado de cima, a tinta que atravessava os cortes produzia nas folhas do passaporte uma marca um pouco esborratada, como a originada por um carimbo com muito uso. De notar que o carimbo tinha data, pelo que a operação final teve de ser feita quando ele já tinha a certeza absoluta sobre o dia da partida.
Tenho por vezes imaginado o seu labor solitário, na casa adormecida, as suas mãos cortando o stencil, passando a tinta, olhando o resultado, rejeitando-o como imperfeito, tentando outra vez, cada um daqueles pequenos gestos uma minúscula contribuição para um trajecto pessoal, convergente com muitos outros caminhos percorridos por muita outra gente.
Queimámos todo aquele material e fomos deitar-nos.
No dia seguinte fomos contactados pelo seu “testamenteiro” – nome dado à pessoa, em geral um familiar ou amigo próximo, que ficava encarregada de recolher e dar destino aos pertences de quem se ia embora. Era um amigo dele que não era aluno do Técnico, pelo que um de nós falou com a direcção da Associação, para sabermos o número do cacifo de L.F., e como não havia chave, teve que ser arrombado. O material que aí encontrámos tinha um “conteúdo literário” um pouco mais “sensível” do que o existente no quarto; ajudámos o testamenteiro a arrumar tudo numa mala que trouxera, e ele lá foi, cumprindo certamente as instruções que tinha recebido.
Os dias foram passando, e nunca chegámos a receber qualquer visita indesejada. Mas ainda tiveram de decorrer alguns anos até que o parar de um carro à noite na rua ou o toque da campainha da porta a desoras passasse a causar uma reacção diferente da que provocava nesses anos cinzentos.

Texto escrito para um concurso intitulado "Estórias para 100 anos de História" no âmbito das comemorações dos 100 anos do Instituto Superior Técnico.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

sábado, 17 de novembro de 2012

Empreendedorismo

 

Inchelentisimo sinhor diretor da TVI

Li num jurnal que o sinhor profeçor Marselo Rebelo de Çouza ganha douze mil euros por converssar na TVI todas as semanas.
Uma das coizas ke o Marçelo fala é dus livros e eu pençei que eu pudia faser aqilo ke ele fás que é ler o autor e o nome do livru e até fasia milhor que o Marselo purque como nao tenho istudos lia mais devagar e e as peçoas percebião milhor.
E açim o Marçelo ficava com mais tempu para falar das outras coizas ke ele fala, ke sãu tudo, e um bucadinho peqenino daqela maça toda ke ele ressebe a mim fasiame munto jeito.

A guardo uma resposta

Muntos comprimentus do

Zé da Mouraria

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Lançamento...

Será a 24 de Novembro, no Fórum Fantástico, tenho lá um conto, e estou na companhia de boa gente...