quarta-feira, 18 de março de 2009

Se tivesse olhos, choraria...

Quando mergulho no passado, o que a memória agarra mais facilmente são os acontecimentos desportivos. E são esses, melhor, são aqueles que ganhei que me dá prazer recordar, uma e outra vez, como um videoclip em loop, os aplausos do público, o surto de adrenalina…

O gimnopediatra foi muito claro para os meus pais: “Señores Gonzalez, tendes aqui um futuro campeão. A estrutura óssea é perfeita, a massa muscular apresenta um potencial como raramente tenho observado, o sistema endócrino está preparado para o arranque, os órgãos principais são impecáveis. Todos os exames e análises que realizámos deram os melhores resultados possíveis. Se a sua carreira for cuidadosamente gerida, poderá trazer-vos muitas alegrias… e não menos proveitos.” E aqui o médico esboçou um sorriso cúmplice.

Ao longo do ensino básico, fui praticando todas as modalidades existentes na escola. Era tão bom nos desportos de equipa como nas disciplinas individuais.
No 3º ano do secundário, os meus pais, seguindo as indicações do conselheiro desportivo, inventaram uma doença – um vírus que eu supostamente teria apanhado nas férias numa viagem ao interior do país – que me fez faltar às aulas até perder o ano. No ano lectivo seguinte, integrado numa turma em que os meus colegas eram em média um ano mais novos, fisicamente eu chamava a atenção: fui capitão das equipas de basquetebol e de futebol, ganhei todos os campeonatos internos e inter-escolares de atletismo e natação.
A meio da escola secundária já os olheiros enviados à pesca de novos talentos pelas universidades desportivas de topo me tinham descoberto, e tínhamos recebido várias propostas de bolsas de estudo. A escolha foi bastante demorada, mas terminada a escola secundária lá fui eu para a New Atlantis University.

Era o ano 2035, quando o Comité Desportivo Universal decidiu abolir as proibições ainda em vigor sobre a utilização de produtos químicos ou dispositivos mecânicos ou electrónicos para melhorar os resultados desportivos.
A eliminação do amadorismo, os valores astronómicos relativos às transmissões de televisão, ao merchandizing e à publicidade envolvendo os atletas tinham levado a que a construção de uma carreira desportiva passasse a ser um assunto conduzido por especialistas.

Foi duro, mesmo muito duro. A partir do momento em que atravessei o Portão do Caloiro, deixei de ter qualquer poder de decisão sobre os mínimos aspectos da minha vida. Com base numa cláusula relativamente vaga do contrato, “A Universidade terá direito ao controlo sobre todos os factores que possam afectar o desempenho desportivo do Segundo Contratante”, eles passaram a controlar as minhas horas de levantar e deitar, tudo o que eu comia e bebia às refeições e fora delas, as aulas a que ia e as horas de estudo, as namoradas, e os treinos, os treinos, sempre os treinos, a pressão constante para fazer melhor, mais longe, mail alto, em menos tempo… Vivíamos – todos os estudantes desportistas de alta competição – numa residência separada dos estudantes “normais”, e a nossa vida era controlada por uma comissão a quem a Universidade tinha confiado a tarefa de rentabilizar o investimento que tinha feito com as nossas contratações. Alguns não aguentaram a pressão: houve três desistências – que ficaram a indemnizar a Universidade por muitos anos – e dois suicídios. Neste caso foram os pais que ficaram a pagar, naturalmente.

Até que esse investimento começou a pagar dividendos.

Os sonhos são frequentes. Não sei se são induzidos pela sopa química que me circula nas veias ou um produto directo dos meus neurónios cansados. Chegam sem aviso, e por vezes tenho dificuldade em distingui-los da realidade. Mas fará muito sentido a distinção entre sonho e realidade no estado em que me encontro?
Acabo de sonhar com o dia em que ganhei o campeonato mundial dos 10000 metros, depois de no dia anterior ter ganho o dos 5000. Foi a demonstração irrefutável de que os órgãos artificiais tinham ganho um lugar definitivo no mundo desportivo; o coração que substituíra aquele com que eu nascera tinha trabalhado a 300 batidas por minuto durante ambas as corridas, e os novos nano implantes pulmonares tinham sido capazes de aumentar mais de duas vezes e meia a taxa de oxigenação do sangue.
O público ficou em delírio, tinham sido batidos dois recordes, e por uma margem de quase 15 por cento.

Ao serviço da Universidade ganhei praticamente todas as competições em que entrei. Tinha que dar tudo por tudo, porque as intervenções cirúrgicas para os upgrades que ia fazendo custavam fortunas, e a forma de as pagar era com os prémios recebidos. Até que chegou o dia em que consegui saldar a minha dívida para com a Universidade, e chegar ao objectivo principal de qualquer desportista: iniciar uma carreira como independente.
Mas foram necessários treinadores, uma equipa técnica, uma equipa médica, um manager... Fiz o mesmo que todos: contraí um empréstimo na Sports Insurance Inc, dando como garantia uma hipoteca sobre os meus upgrades.

A época dos Olímpicos é a pior. A televisão por cima da cama transmite ininterruptamente provas desportivas, varrer os canais não traz nada de novo, todos eles transmitem mais do mesmo, e de vez em quando apanho transmissões de arquivo de uma das minhas derrotas, o que me deixa ainda mais deprimido do que habitualmente estou. E aí, o monitor da composição química do meu sangue detecta a alteração do padrão hormonal e injecta uns miligramas de anti-depressivo. E eu fico meio zombie, a olhar para mim no 2º ou 3º lugar do pódio, como se se tratasse de outra pessoa...

O início da minha carreira independente continuou a trajectória ascendente iniciada na Universidade. Mas a indústria médica todos os anos aparecia com órgãos mais perfeitos, próteses mais eficientes, e ou se continuava a escalada dos upgrades, ou se parava de ganhar provas.

Os olhos com que vejo a TV já não são também aqueles com que nasci. A dada altura, para melhorar os meus reflexos no full contact fiz um upgrade onde os cirurgiões eliminaram o ponto cego da retina e melhoraram a visão periférica. Quando comecei a perder competições e falhei o pagamento da hipoteca, foi uma das primeiras coisas que me tiraram, os meus olhos. E hoje vejo através de uma câmara CCD cujo sinal é injectado directamente no meu nervo óptico.

Para a prática dos desportos marciais, os meus ossos foram submetidos a um processo de difusão de nano partículas de titânio e nanotubos de carbono, tornando-os mais resistentes ao choque e ao mesmo tempo mais flexíveis. Quando a hipoteca foi executada, fui levado para uma clínica onde durante algumas semanas aqueles componentes foram extraídos do meu organismo por difusão inversa, deixando o meu esqueleto num estado de fragilidade extrema, osteoporose em fase terminal.

Estava escrito no contrato, mas nós pensamos que vamos conseguir estar sempre com os pagamentos em dia. Até um dia...

Já por vezes me tinha questionado sobre o que acontecera a certos atletas que tinham ganho muitas competições, depois passado por uma fase de segundos e terceiros lugares, e de repente desaparecido de campeonatos e provas, dos jornais e TV. Agora já sei. Fiquei a saber quando dois enfermeiros fizeram rolar a minha cama, com o sistema de suporte de vida acoplado, ao longo daquela enorme enfermaria, até ao lugar que me estava destinado.
Passei por uma cama onde estava Jack Steel, que foi recordista da maratona olímpica durante 10 anos seguidos. E outra com Ray Hoyle, campeão do decatlo, eleito desportista do ano em 5 anos consecutivos. E outro, e mais outro, aquela enfermaria daria para encher um Hall of Fame do desporto mundial.
Como é que dizia o contrato que assinei – que provavelmente todos assinámos – com a Sports Insurance Inc.?
“O Primeiro Contratante obriga-se a envidar todos os esforços para manter vivo o Segundo Contratante.”
E estou seguro que eles cumprirão escrupulosamente esta cláusula.

Se tivesse olhos, choraria.

sexta-feira, 13 de março de 2009