quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Antes de assinar, deve ler sempre as letras pequeninas...

O Bilas, de seu verdadeiro nome Bernardo Lacerda, era um inovador em alterações corporais.
Foi um dos primeiros da turma a fazer piercings, mas tirou-os todos quando aquilo passou a ser uma moda e era difícil encontrar alguém sem uma argola no nariz ou no sobrolho...
Umas semanas depois, apareceu-nos com os olhos totalmente vermelhos. Disse-nos que no dia anterior tinha esperado mais de três horas na fila para entrar na clínica onde aplicavam aquela técnica de injectar corantes na córnea.
Ainda nós todos passeávamos com os auriculares nos ouvidos a bombar decibéis quando ele fez um dos primeiros implantes auditivos: injecção directa da música no nervo auditivo, mudança de faixa pressionando atrás da orelha. A malta ficou banzada, poder passar uma aula a ouvir música sem o setôr dar conta!
Foi então que as operadoras de telemóvel surgiram com a última novidade: tornar obsoleto o aparelho, embutindo o auricular no polegar, o microfone no dedo mínimo e nos outros dedos sensores de pressão para marcação dos números e acesso às restantes funcionalidades do plano subscrito.
E enquanto a malta tinha que continuar a encostar o télé ao ouvido era ver o Bilas, polegar junto à orelha e mínimo esticado junto à boca, perdido em intermináveis conversas.
Mas o Bilas é muito distraído e esqueceu-se de pagar a mensalidade...
No sábado passado, tocaram-lhe à porta às 11 da manhã. Foi abrir meio ensonado e deu de caras com um grupo que incluia um tipo de fato escuro, um polícia e mais dois de bata branca. O de fato escuro confirmou a identidade do Bilas e disse:
“Tem de nos acompanhar.”
“Acompanhar aonde?”
“Ao hospital, para dar execução à cláusula 22 do Contrato que o senhor assinou com a companhia Transceptor Incorporado que eu represento.”
Que cláusula 22?”, perguntou o Bilas, que já estava a achar a situação um pouco estranha.
O outro, que devia ser advogado, disse: “Vou ler-lhe a cláusula em questão. Cláusula 22 – O subscritor do plano declara que tomou conhecimento que a tecnologia implantada é um processo irreversível, que implica a fusão de componente sintéticos e orgânicos. Consequentemente, em caso de incumprimento do contrato, em particular falta de pagamento de mensalidades, o subscritor aceita que a operadora Transceptor Incorporado proceda à amputação da mão em que tiver sido instalado o transceptor, em estabelecimento deviamente credenciado pelo Ministério da Saúde.”
Quando o significado destas palavras entrou no seu cérebro ainda ensonado, o sono desapareceu completamente e o Bilas começou a gritar e gritou até que um dos de bata branca lhe aplicou uma injecção no braço com uma seringa que já trazia preparada.
Com o choque emocional, o transceptor entrou em modo emergência e todos os números da lista de contactos do Bilas receberam em simultâneo o seu grito de desespero. Ainda o tenho nos ouvidos...

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Nova

Já começou a dar luz o Número 3 (editor e co-editor: Ricardo Loureiro e Nuno Fonseca). O pdf pode ser descarregado do link acima. São 80 páginas cheias de coisas para ler, entre elas um conto intitulado "O Povo do Livro" do autor deste blog.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Silêncio que se vai cantar o fado

que é o tema do Nº 12 da Minguante (como houve um número zero, na realidade é o 13, que até é um número mais adequado a fatalismos...) e onde tenho uma pequena variação em dó menor.

sábado, 8 de novembro de 2008

Subsídios para uma teoria da decisão - um "case study"

Alexandrino sempre foi um indeciso.
Em criança, se lhe ofereciam rebuçados de uma caixa, sentia-se incapaz de optar por um dos coloridos ou prateados objectos. Já sem falar da sempiterna pergunta "Gostas mais da mamã ou do papá?" em relação à qual ficava a olhar fixamente para a perguntadora tia Eufrásia, até esta se sentir incomodada e arranjar um pretexto para o largar e ir à procura de outra vítima.
No liceu, na turma que frequentou havia duas raparigas; nunca conseguiu decidir qual das duas convidar para sair.
Em casa só pode ter uma variedade de queijo, caso contrário levaria uma eternidade a decidir de qual deles cortar uma fatia para comer. E o mesmo acontece com qualquer outro tipo de alimento ou bebida.
Ir comprar qualquer coisa é um verdadeiro martírio para Alexandrino, porque agoniza em frente a diversas opções, seja comida, roupa ou uma simples esferográfica.
Hoje de manhã, quando Alexandrino saiu de casa, teve uma desagradável surpresa: a passadeira de peões que existia praticamente em frente da porta do seu prédio, e que ele atravessava para, no outro lado da rua, apanhar o autocarro que o leva ao emprego, tinha desaparecido. Avançou até à beira do passeio e verificou que as faixas brancas que assinalavam a passadeira tinham sido pintadas por cima. Olhou à esquerda e à direita e viu que a cerca de 50 metros em ambas as direcções, a Câmara Municipal tinha criado duas novas passadeiras, em substituição daquela que tinha eliminado. A angústia perante a escolha instalou-se no seu espírito...

Isto passou-se cerca das oito e meia da manhã; são agora 19 e 45 e Alexandrino ainda lá está, parado na beira do passeio, incapaz de decidir sobre qual das passadeiras utilizar para atravessar a rua...