sábado, 25 de outubro de 2008

Cobertura Televisiva Total

Naquele país longínquo(*), o primeiro ministro tinha uma das habituais reuniões com os seus assessores.
“Existem no país apenas 1400 casas sem televisão”, leu ele no memorando que lhe tinha sido entregue.
“Apenas 1400 casas...?” perguntou enfaticamente.
O assessor responsável pelo memorando acenou com a cabeça, concordante.
“Onde você escreveu apenas 1400 casas sabe o que eu leio? Eu leio ainda 1400 casas! Não está a ver o que isso significa? Isso significa que ainda há 1400 casas onde o Telejornal não chega, onde não se vê uma inauguração, onde não se assiste a uma conferência de imprensa dada por um ministro... Não percebe as implicações disto?”
O assessor, sentindo o gozo disfarçado dos colegas pela posição desconfortável em que se encontrava, ainda tentou resistir:
“Mas, senhor primeiro ministro, os restantes factos são muito positivos. Veja, somos o primeiro país da Europa em número de casas com dois aparelhos, a média de consumo diário de televisão é de 3 horas e 37 minutos...”
“Isso são prémios de consolação”, atalhou o primeiro ministro, imperativo. E continuou em tom dramático: “É preciso fazer alguma coisa para reduzir essas 1400 casas... a zero!”
“Vamos preparar um plano de distribuição de televisores a essas 1400 casas. Arranjar um fornecedor, obter os aparelhos, e anunciar, numa acção conjunta da Inserção Social com o País Tecnológico, um novo programa...”. Pensou uns segundos e completou: “TV para Todos!”. Se entregarmos 200 aparelhos por mês, o programa durará 7 meses, com a cobertura informativa adequada. E o nosso país será o primeiro no mundo, no mundo!, com cobertura televisiva total. E será um passo gigantesco, gigantesco, contra a info-exclusão!”
Olhou em volta, satisfeito com os sorrisos que viu nos assessores: “E agora, meus senhores, há trabalho a fazer! Go! Go! Go!”
O primeiro-ministro adorava usar estas interjeições no fim das reuniões. Dava-lhe uma sensação de dinamismo, e gostava de visualizar aquelas trinta e tal pessoas saindo dali a correr, como se cada uma transportasse consigo um grão do poder que emanava do chefe do executivo.

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O programa TV para Todos! foi lançado com pompa e circunstância. E as reportagens sucederam-se sobre aqueles cidadãos, em geral habitantes do país profundo, beneficiados com aquela oferta de televisores.
Joaquim Lucas, jornalista, trabalha no jornal “Ecos da Semana”. O chefe de redacção encarregou-o de preparar uma peça sobre o TV para Todos! para ser publicada, em jeito de balanço, quando o programa terminar.
Joaquim sabe que o ângulo humano é o fundamental. Vê todas as reportagens que saem nos diversos canais generalistas sobre o programa, embora as ache um bocado monótonas: descrição do agregado familiar, político que chega, entrega o televisor, o casal e filhos sorridentes a agradecer, ligam o aparelho, fim da reportagem.
O dia de hoje não é excepção. Joaquim, acomodado no sofá frente ao televisor, bebe uma cerveja e come uma sanduiche que trouxe da loja de conveniência à esquina da rua, e vai vendo mais uma série de entregas, quando surge uma que desperta o jornalista de investigação que existe nele. Começa como as outras, mas o que lhe chama a atenção é o casal referido não aparecer, as imagens mostram apenas fotografias deles, uma no dia do casamento, outra já mais velhos, uma imagem rápida do aparelho oferecido, duas frases curtas pelo jornalista destacado para a reportagem e transição para a seguinte. Mas por que razão o sr. António Justino não apareceu na reportagem?
Joaquim fareja aqui alguma coisa, pode ser a salvação da peça que tem que preparar e em relação à qual ainda não descobriu uma estrutura adequada. Abre o portátil, liga-se à web, vai ao site www.tvparatodos.pt e percorre a lista das pessoas que receberam (ou receberão) televisores até encontrar António Justino.
Toma nota da morada, Vale da Ribeira, um pequeno lugar nos arredores de Lisboa. Mete-se no carro, introduz o nome do lugar no GPS e põe-se em marcha.
Cerca de quarenta minutos depois está em Vale da Ribeira. Entra na taberna “A estrela da manhã” onde lhe indicam a localização da casa do Ti Justino. É uma pequena moradia, já praticamente no exterior do lugar.
Joaquim dirige-se para lá, pára o carro, observa a casa térrea, já um tanto decrépita, e percorre a pé o carreiro que leva à entrada. Quando vai bater à porta, sente uma pressão nas costas e alguém atrás dele diz-lhe: “Quietinho, não faças asneiras e não te acontece nada.” E noutro tom de voz: “Abre, temos uma visita.”
A porta abre-se, e surge um homem vestido de preto, com óculos escuros, um auricular no ouvido esquerdo, que se desvia para deixar entrar Joaquim e o companheiro. Não dizem quem são, mas Joaquim não precisa disso. Já antes contactou com elementos do Serviço Secreto e aqueles não enganam. O que se mantém atrás de Joaquim revista-o rapidamente. “Está limpo”, anuncia.
O outro fala: “Identificação.” Joaquim puxa da carteira profissional e mostra-lha.
“O que vieste fazer aqui?”
O jornalista pensa que não ganha nada em estar a inventar, e conta a verdade, como se sentiu intrigado por ver a reportagem sem que aparecessem as pessoas que recebiam o televisor, e que pensou que isso podia dar uma história.
Os dois agentes parecem ficar convencidos. Um deles ainda comenta para o outro: “Eu bem disse ao tipo da televisão que podia haver quem estranhasse a reportagem, mas o gajo insistiu, que as entregas tinham que ser todas registadas, e mais isto e mais aquilo...”
O que estava dentro de casa conduz Joaquim à outra porta da sala, abre-a e deixa-o espreitar para outro compartimento, escassamente mobilado, mal iluminado por uma lâmpada suspensa do tecto, onde estão sentados num sofá um homem e uma mulher, amarrados e amordaçados. Torna a fechar a porta.
“António Justino e a mulher?”, pergunta Joaquim. Os agentes confirmam.
“E porquê isto?”
“Quando chegámos com o televisor o Justino começou aos berros, que não queria o televisor para nada, precisava era de dinheiro para comprar sementes e rações para o gado, mas isso o governo não lhe dava, e continuou com insultos aos ministros e aos políticos em geral. Não seria bom que isso aparecesse na televisão. Por outro lado, se não fizéssemos a entrega, o objectivo do Governo de reduzir a zero o número de casas sem televisão não seria cumprido. Não podíamos permitir que um agricultor ignorante e analfabeto afectasse desta forma os objectivos do Governo, pois não?”
Joaquim não consegue deixar de concordar.
“E foi o único caso de... resistência?”
“Houve mais um ou dois; em 1400 pessoas há sempre algumas ovelhas ranhosas! Mas aí tivemos mais tempo, e conseguimos arranjar um vídeo que encaixou perfeitamente na reportagem. Desta vez não foi possível...”
“E o que vão fazer com eles?”
“Nada, libertamo-los daqui a umas horas, quando a entrega deles já não for notícia.”
“E se eles falarem?”
“Ora, quem vai acreditar num casal de agricultores meio patarecos? Vão ter tanta credibilidade como essa malta que jura que foi raptada por extra-terrestres e que andou a passear num OVNI.”
“E eu, posso ir-me embora?”
“Podes, mas atenção: o que viste e ouviste aqui não é notícia...”
Joaquim sabe detectar uma ameaça quando a ouve.
“Claro, eu não vi nada, na realidade nem estive aqui.”
“Acreditamos que não, mas vamos estar a observar-te.”
Enquanto conduz de volta a casa, Joaquim Lucas vai pensando: “Que pena, uma história com tanto potencial, e logo calha ser tão sensível do ponto de vista político. Eu podia transformá-la numa peça de ficção... Nãã, alguém ia relacionar com os acontecimentos e eu ficava à pega com os Secretos... Vou ter que deixar cair a história... Lá vai ter que ser a peça do costume, a cobertura total do país, a nota patriótica quanto baste, meia dúzia de frases tiradas de outras tantas entrevistas com contemplados, a era da informação, blá, blá, blá... Que pena..."

(*) Aviso aos leitores: esta frase de abertura deve ser considerada equivalente ao mais habitual “Qualquer coincidência com factos ou pessoas reais é pura semelhança”.

Agradeço a Carlos Fiolhais que num post no De Rerum Natura apresentou a informação que inspirou este texto.

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