domingo, 3 de fevereiro de 2008

Histórias do meu bairro

Os nossos problemas começaram com a Universidade para a Terceira Idade.
Mas é melhor começar pelo princípio: o nosso bairro é óptimo, um bocado envelhecido, mas toda a gente se dá bem.
É na leitaria “Estrela do Bairro” do Sr. António que nos costumamos encontrar todas as tardes. Aí ou, estando bom tempo, nos bancos do jardim em frente.
Uma tarde apareceram uns jovens que nós já conhecíamos porque trabalhavam como monitores nalgumas actividades promovidas pela Junta de Freguesia. Traziam uns papeis de uma coisa chamada Universidade para a Terceira Idade.
O primeiro a inscrever-se foi o Antunes. Contabilista reformado – é sempre ele que faz as contas quando jogamos às cartas ou ao dominó – inscreveu-se no curso de Economia e Gestão, e ficou particularmente interessado numa disciplina que se chamava “Economia para um mundo global”.
Quando veio da primeira aula parecia outro. Vinha maravilhado com o professor, “um rapaz novo, mas já com um MBA da Católica, vejam lá vocês!”. À terceira vez que disse que estava a gostar muito de fazer aquela cadeira, o Sr. Firmino atirou-lhe: “Mas ó Antunes, você agora é carpinteiro?”. Foi uma fartadela de riso, mas ele afinou, e o que safou a situação foi que a televisão começou a dar o desporto e todo o pessoal se calou para ver os resumos dos jogos.
E semana a semana, a situação foi-se degradando. Quando veio da terceira aula, começou com uma conversa de privatizar o banco que fica no sítio mais abrigado do jardim, para depois o alugar aos quartos-de-hora. Mas a Dona Etelvina que gosta de se sentar nesse banco a dar milho aos pombos e usa uma bengala grossa, foi-lhe dizendo: “Se me aparece alguém a dizer que tenho de pagar para me sentar naquele banco, leva logo uma bengalada.” E acompanhou a frase com um gesto ilustrativo, o que levou o Antunes, prudentemente, a deixar de falar no assunto.
Mas foi sol de pouca dura. Na semana seguinte já estava a tentar convencer o Sr. António a instituir consumo mínimo na leitaria, ou a alugar a Bola e o Record que estão sempre em cima do balcão para os clientes lerem.
O sr. António, que veio de Unhais da Serra aos 8 anos trabalhar como marçano, depois como empregado de mesa, até conseguir montar o seu próprio estabelecimento, olhou-o muito sério e disse: “Sr. Antunes, nunca ouviu dizer que 'quem sabe da tenda é o tendeiro'?”. E deixando-o a digerir o provérbio, foi passar o esfregão pela base da máquina de café.
À medida que o curso avançava, o Antunes foi piorando. A meio do semestre, depois de ter tido uma boa nota no teste – e já ninguém podia ouvir contar outra vez que o professor tinha elogiado perante a turma o seu desempenho – veio com outra ideia: lançar uma OPA sobre a mesa e as cadeiras existentes debaixo do caramanchão, onde o grupo da sueca, como lhe chamamos no gozo, gosta de passar as tardes de Verão a bater as cartas.
Obviamente que o grupo considerou a OPA hostil, e um deles, o Jaquim Baleizão, que foi pastor em novo, prometeu-lhe que na próxima vez que viesse com aquela conversa era corrido à pedrada. O Jaquim é homem para acertar numa lata vazia a vinte metros, pelo que o Antunes decidiu bater em retirada, resmungando contra a falta de cultura económica desta gente, incapazes de perceber as vantagens de deixar funcionar livremente o mercado.
As coisas estavam a começar a ficar feias, e alguns de nós foram falar com a Dona Teresa, que tinha sido enfermeira até se reformar do Júlio de Matos, e que também se tinha inscrito na Universidade para a Terceira Idade, onde andava a estudar "Medicinas alternativas". Já tinha feito "Acupunctura", e andava a fazer "Talassoterapia". Com as agulhas, ia praticando na vizinhança e já conseguia aliviar algumas dores, daquelas que aparecem quando a gente vai para velho.
Depois de conversarmos um bocado sobre o comportamento do Antunes, ela fez o diagnóstico:
"O Antunes está a descolar da realidade, isto acontece quando os caminhos por onde circula o prana no organismo se encontram obstruídos." Olhámos uns para os outros, um bocado confusos, mas ela parecia saber o que estava a dizer. "A acupunctura pode ajudar à desobstrução, mas não é suficiente. A talassoterapia, que eu ando a estudar agora, é considerada muito eficaz nestes casos. A sério, a sério, devia ser com água salgada, mas como o efeito principal é o banho frio, se calhar com água doce já dará efeito."
Começámos a discutir estas sugestões. A parte das agulhas era mais fácil: o Antunes tinha ficado bem impressionado com os resultados em alguns dos vizinhos, principalmente a Dona Leocádia, que andava sempre dorida da ciática e que agora, depois de umas sessões com as agulhas, caminhava ligeira como um pardalito. E como ele se queixava amiúde de dores de cabeça, não devia ser difícil convencê-lo a experimentar o tratamento. Já quanto ao banho frio...
Depois de excluída a ideia de pedir aos Bombeiros Voluntários do bairro para lhe dar uma esguichadela com a mangueira – o Sr. Rafael, que foi bombeiro, disse logo que aquilo era má ideia, porque a água sai da agulheta com muita pressão e ainda íamos magoar o Antunes – achámos que se calhar um mergulho no lago dos patos ia fazer o mesmo efeito.
E assim foi. Depois de a Dona Teresa lhe fazer um tratamento com as agulhas, fomos dar uma volta pelo jardim, e naquele sítio onde a vedação em volta do lago está caída – aliás já nos queixámos várias vezes ao Presidente da Junta de Freguesia – um de nós "desequilibrou-se", empurrou o Antunes que foi parar dentro de água. Claro que lhe acudimos imediatamente, ajudámo-lo a sair do lago, acompanhámo-lo a casa, e ficámos um pouco ansiosos à espera do resultado do tratamento.
Passados dois dias, o Antunes reapareceu, e parecia mais calmo. Mas nessa noite, estávamos na leitaria, e a televisão começou a dar uma mesa redonda com a participação de três economistas, ele arrancou com um chorrilho de insultos e só não atirou com a chávena da bica ao televisor porque o segurámos a tempo. Tivemos que o levar a dar uma volta ao quarteirão, ao fresco da noite, para ver se acalmava.
Devemos ter exagerado na dose do tratamento!
Agora até o Dr. Zeferino – gerente da Caixa ali no bairro, que é uma simpatia quando lá vamos todos os meses levantar a reforma – deixou de ir tomar a bica à "Estrela do Bairro", porque o Antunes começou a insultá-lo, de aldrabão para cima...
A Dona Joaquina tem andado a pesquisar lá no livro de acupunctura se descobre um tratamento para aplicar ao Antunes, mas o livro está escrito em chinês – foi-lhe emprestado pelo professor – e ela só consegue guiar-se pelos bonecos, portanto ainda vai levar algum tempo.
Mas estamos todos muito preocupados, até porque soubemos que o Antunes transferiu a matrícula do curso de "Economia e Gestão", que frequentava, para o de "Artes Marciais", e inscreveu-se nas disciplinas "Karaté para maiores de 60", "Defesa e ataque com armas brancas" e "Tiro ao arco".
Tememos o pior!

2 comentários:

José Lopes Coutinho disse...

:)
Fujam da frente!

João Ventura disse...

Não é caso para menos!
:-)