quinta-feira, 17 de maio de 2007

Evolução

Publicada aqui a 14/Jan/2006, esta microestória é (sem o título) um SMS e apareceu agora em Veredas, uma revista online de micronarrativas, editada por Marcelo Spalding.

Stuff That Dreams Are Made Of

A versão inglesa do pequeno texto com o título acima, cujo original apareceu aqui no blogue em 14 de Março do ano passado, foi agora publicada no Bewildering Stories nº 244.

domingo, 13 de maio de 2007

Arquivo morto (conclusão)

Nessa noite, Antunes teve um pesadelo. Sonhou que estava no escritório, era um dia normal de trabalho, quando subitamente a porta da escada de serviço saltou como se do outro lado tivesse havido uma explosão. Pelo buraco aberto começaram a entrar dossiês, pastas, caixas de arquivo, gavetas com documentos, agredindo os funcionários, e Antunes viu o Almerindo a cair com a cabeça esfacelada por uma gaveta metálica, e o Mendes atacado por centenas de folhas A4 que o envolveram completamente, a boca cheia de folhas amachucadas, asfixiado lentamente. Todos os outros tentavam, com pouco sucesso, defender-se do vicioso ataque. Antunes tinha sido encurralado por uma dúzia de caixas de arquivo com aspecto ameaçador, e preparava-se para vender cara a vida, quando acordou.
Assustado, Antunes considerou aquele sonho premonitório. Não conseguindo voltar a dormir, levantou-se, fez um chá de camomila, e preparou cuidadosamente a sua estratégia. Pelas nove e meia telefonou para o escritório, dizendo que se sentia adoentado e que iria faltar naquele dia. A Dona Ivone, telefonista, tomou nota do recado e despediu-se: “Então as suas melhoras, senhor Antunes”.
Na sua juventude, Antunes fora caçador. Há muitos anos que não ia à caça: a sua defunta mulher não apreciava actividades de ar livre, e depois da sua morte nunca se tinha sentido suficientemente motivado para recomeçar a caçar. Mas por qualquer razão nostálgica todos os anos renovava religiosamente a licença, e todo o material, da caçadeira à máquina de encher cartuchos, era semanal e escrupulosamente limpo.
A outra actividade com que Antunes ocupava os tempos livres era a electrónica. Já em miúdo montava e desmontava rádios e instalava alarmes pela casa toda; tinha depois entrado na revolução digital, e estava continuamente ocupado com pequenos projectos, alguns de grande utilidade. O último produto que lhe tinha saído das mãos era um pequeno aparelho que podia ser ensinado a reconhecer anúncios na televisão, e que desligava o som do televisor e ligava o leitor de CDs durante os intervalos publicitários. Por tudo isto, aquilo que agora se propunha fazer era uma brincadeira de crianças.
Antunes começou por ir à Espingardaria Diana, onde o Sr. Abílio o recebeu afavelmente e lhe vendeu chumbo e pólvora na quantidade adequada para alguém que ia recomeçar a caçar regularmente. Dirigiu-se em seguida à ElectroVendas, onde obteve uns quantos componentes electrónicos de que viria a precisar, e passando pela drogaria do bairro, comprou pequenas quantidades de alguns produtos químicos, totalmente insuspeitos quando considerados isoladamente. Regressado a casa, começou a preparar um engenho explosivo, utilizando alguns dos materiais recém-adquiridos. O toque final foi dado por um napalm caseiro, que preparou na cozinha e cuja receita tinha obtido na internet.
Construiu depois o dispositivo de ignição, accionado por um relógio digital. Graças à microelectrónica, o conjunto era de tamanho diminuto, e juntamente com o explosivo, foi alojado dentro de uma caixa de comprimento e largura correspondentes a uma folha A4 e altura de cerca de 4 centímetros. Terminou a tarefa ao fim da tarde. Jantou frugalmente, viu um pouco de televisão, programou o despertador para uma hora mais cedo do que habitualmente, deitou-se e dormiu tranquilamente.
No dia seguinte, após a higiene matinal e um nutritivo pequeno almoço, Antunes pegou cuidadosamente na caixa, meteu-a dentro de uma pasta de couro onde habitualmente transportava livros ou revistas que costumava ler no intervalo do almoço e saiu de casa. Tinha decidido ir a pé em vez de tomar o autocarro habitual, porque não queria que o objecto que viajava dentro da pasta fosse muito sacudido.
Quarenta minutos mais tarde estava a chegar ao seu local de trabalho. Cumprimentou o porteiro à entrada do prédio, subiu ao escritório onde foi o primeiro a chegar, tirou do chaveiro a chave do arquivo morto e para lá se dirigiu, levando o objecto que tinha fabricado no dia anterior. À entrada, sentiu um arrepio na espinha, mas controlou-se e depois de ajustar o relógio do dispositivo para daí a duas horas, arrumou a caixa numa prateleira entre dois dossiês e saiu rapidamente. Regressou ao escritório, tornou a pôr a chave no sítio e tinha acabado de sentar-se à secretária quando chegou o primeiro colega. “Bom dia”, “bom dia”, conversa de circunstância, “então ontem...”, “oh, pá, uma dor de estômago, alguma coisa que comi...”. Meia hora mais tarde o escritório estva em pleno funcionamento.
A meio da manhã um ruído surdo fez estremecer o edifício. “O que foi isto?”, “Parecia uma explosão”, e menos de um minuto depois começou a tocar o alarme e o pessoal, seguindo as indicações constantes do Plano de Emergência Interno do edifício (ensaiado no simulacro realizado dois meses antes), dirigiu-se ordeiramente para o exterior. Agrupados no passeio fronteiro, todos podiam ver os grossos rolos de fumo que saiam das janelas do piso onde se localizava o arquivo morto. “O fogo é no arquivo morto”, disse, expressando o óbvio, um dos colegas de Antunes. “Espero que sim, agora”, respondeu este a meia voz, não reparando no olhar de estranheza do colega perante a sua resposta.
Os bombeiros chegaram rapidamente e iniciaram o combate ao incêndio, conseguindo evitar que este se propagasse aos restantes pisos. Quando foi iniciada a fase de rescaldo, o chefe de Antunes, depois de falar com o comandante dos bombeiros, veio junto dos funcionários dizer-lhes que podiam ir para casa, e que aparecessem no dia seguinte, à hora habitual.
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No dia seguinte, à entrada do edifício, Antunes cruzou-se com dois homens que saíam transportando o que conseguiu identificar como restos irrecuperáveis do arquivo morto. “O fogo e a água dos bombeiros fizeram um trabalho eficiente”, pensou Antunes. Quando entrou no escritório, um dos colegas disse-lhe: “O chefe quer falar contigo”.
Antunes dirigiu-se à porta do gabinete do chefe, bateu e entrou. O chefe estava sentado atrás da secretária, e havia mais dois homens no gabinete.
“Bom dia, Antunes. Estes dois senhores são da Polícia Judiciária e querem fazer-lhe algumas perguntas...”

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Arquivo morto

Quando pela terceira vez naquele dia o chefe o mandou ao arquivo morto buscar uns documentos, Antunes começou a desconfiar. No dia seguinte, iniciou a elaboração de um registo, tarefa facilitada pela posição da sua secretária junto da porta da escada de serviço que conduzia, dois pisos abaixo, ao referido arquivo. Na sexta-feira à tarde, consultando o seu registo, apurou que, ao longo da semana, o Fernandes tinha lá ido cinco vezes, o Fonseca quatro, o Mendes seis, e o resto da lista apresentava números semelhantes. O próprio chefe tinha ido ao arquivo morto duas vezes, provavelmente à procura de documentos de carácter mais reservado.
Perante esta evidência, Antunes só conseguiu chegar a uma conclusão: o arquivo morto não estava morto!
Antunes era um funcionário cumpridor. Claro que era capaz de dar uma olhadela à Internet nas horas de trabalho, ou de meter ao bolso uma borracha ou uns clips para levar para casa, mas em questões importantes era de uma exemplaridade exemplar. E perante este problema de um arquivo morto que afinal se encontrava bem vivo, só conseguia ver uma saída.

(continua...)

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Circularidade

Avisado pelo SMS que acabava de chegar ao telemóvel, o homem sai rapidamente do edifício, salta os 3 degraus entre a porta e o passeio e dispara a correr, atravessando a larga avenida. Tinha acabado de pisar o asfalto quando um carro sai da rotunda fazendo guinchar os pneus, e inicia uma trajectória que o vai levar a cruzar-se com o homem que corre...
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Coincidente com o guinchar dos pneus, como se fosse um sinal, os três homens com as faces ocultas por máscaras de carnaval entram no salão principal do restaurante de luxo “Átrio do Paraíso”. Posicionam-se de forma estratégica, de modo a cobrir todos os pontos de acesso ao salão, puxam das armas que traziam ocultas debaixo das gabardinas e um deles grita:
- Isto é um assalto! Ponham carteiras e todos os objectos de valor em cima das mesas!
Um dos clientes do restaurante leva a mão disfarçadamente ao bip que tem preso ao cinto e pressiona um botão. Num edifício não longe dali, um sinal de alarme começa a piscar...
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Dois seguranças do edifício sede da estação de televisão XPTO tomam o elevador de emergência para o 8º andar, onde ficam os serviços de produção. Entram numa sala, onde os concorrentes ao concurso de curtas metragens aguardam a decisão do júri que, presidido pelo Director de Produção, visiona as peças submetidas ao concurso. Os seguranças atravessam a sala de espera em passo rápido até chegarem à porta do gabinete. Um deles bate à porta e sem esperar resposta, abre-a e entra:
- Senhor Director, temos uma emergência!
O director carrega na tecla do telemóvel para enviar um SMS que acabou de escrever. No gabinete estão mais quatro homens, sentados em cadeiras confortáveis, olhando um televisor de alta definição, que mostra um carro a derrapar na entrada de uma avenida. A câmara executa um contra-picado, e a imagem mostra agora ao retardador o carro a avançar em direcção a um homem que atravessa a avenida a correr...
O director pousa o telemóvel na mesa em frente, vira lentamente a cabeça e olha para o segurança...

sábado, 5 de maio de 2007

Novo e-zine

O NOVA, editado pelo Ricardo Loureiro, começou a emitir luz. Entre outras coisas, está lá dentro o meu conto "Noosfera". A versão pdf pode ser descarregada aqui.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Os dois lados da questão


O desenhador esmerou-se a desenhar um monstro, para um concurso de ilustração. Queria que fosse um monstro especial, um pouco assustador, mas não tanto que não pudesse ser usado num livro infantil...

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No país dos monstros, o monstrinho acordou aos guinchos. O pai monstro aproximou-se:
“Que se passa?”
“Tive um sonho feio, papá! Sonhei que não existia, e que estava a nascer desenhado por uma criatura horrorosa...”
“Tens uma imaginação monstruosa, filhote! Foi só um pesadelo... Agora dorme.”
E para acalmar o filho, com o sétimo dedo da terceira mão coçava-lhe a segunda cabeça, que ainda mantinha alguns olhos abertos...