domingo, 31 de dezembro de 2006

Reflexão sobre a carestia da escrita

Precisava de umas palavras para acabar o conto. Fui ao mercado. O governo devia ter mão nisto! Tudo caríssimo! Substantivos, adjectivos... um roubo! E os verbos? Passados, presentes, vá lá, mas os futuros!!!
“Sabe, os futuros andam muito incertos”, justificou-se, profissional, o vendedor. “Embrulho?”
“Não, obrigado, é para escrever já.”

História trágico-cósmico-fronteiriça

Quando chegou ao fim do universo, o astronauta rejubilou: afinal era finito! Mas a natureza tem horror ao vazio; encostado ao universo havia outro. E o pessoal do SEF exigiu-lhe visto para entrar. Regressou, humilhado, e fez-se funcionário público. Carimbava os vistos aos turistas que queriam visitar o universo vizinho...

Entre a insustentável leveza e o irremediável peso das palavras, a frustração do escritor perfeccionista

Escreveu com palavras leves. O conto escapou-lhe das mãos e subiu rapidamente no ar até se perder de vista.
Recomeçou, usando palavras pesadas. O conto escorregou da folha de papel e afundou-se, irremediavelmente perdido.
Quando, persistente, acabou o terceiro, com palavras de densidade apropriada, já o prazo tinha sido ultrapassado.

sábado, 30 de dezembro de 2006

Entre o Dentro e o Fora há sempre uma fronteira, ainda que frágil

Dizia o Lado De Dentro, orgulhoso: “Eu contenho o início, o ovo!”
“Mas eu incluo todo o universo, menos tu”, retorquia o Lado De Fora, enfático.
“Se continuam, salto daqui abaixo e mato-nos aos três!”, gritou a Casca, desesperada.
Palavras premonitórias: passou a dona da galinha, apeteceu-lhe um ovo estrelado...

Mini-saga (o texto, excluindo o título, tem exactamente 50 palavras) escrita em resposta a um desafio lançado na lista pelo Luís Rodrigues. Hão-de aparecer mais 3, já publicadas no site da Épica.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

O trabalho perfeito contém a sua própria recompensa

Tinha sobre a mesa todo o material necessário. A cada caixa de explosivo adicionou a quantidade apropriada de pregos de aço. Instalou os detonadores e efectuou as ligações eléctricas com uma atenção meticulosa. Montou a bateria e inspeccionou uma vez mais todo o conjunto.
Colocou o cinturão, vestiu por cima o casacão largo; no bolso direito, a sua mão manteria o disparador apertado até ao momento certo.
Saiu de casa, respirou o ar fresco da manhã e com um sorriso de felicidade na face dirigiu-se para o autocarro quase cheio de crianças a caminho da escola.

Uma versão deste texto em espanhol encontra-se aqui, em resposta a um desafio de Sergio Gaut vel Hartman: textos com aprox. 100 palavras com o tema "Monstros". Agradeço à Mercedes a tradução.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Projecto: Natal

O gestor de sucesso ditava para o gravador:
(...) o projecto aprovado pelo Conselho de Administração em Maio passado, tem estado a desenvolver-se a bom ritmo, tendo mesmo produzido algumas agradáveis surpresas.
Um – O crédito aos funcionários do grupo para ser aplicado em compras de Natal - acréscimo de vendas de 17,3% nos Brinquedos, 15,4% nos Electrodomésticos e 20,3% nos Livros/Discos.
Dois – A iluminação festiva colocada na área adjacente ao Centro provocou um acréscimo de frequência da ordem dos 12%.
Três – A campanha publicitária na TV, rádio e imprensa escrita, afinada produto a produto, tem causado, na semana seguinte a cada promoção, acréscimos de vendas entre 15 e 43%.
Carregou no Pause do gravador. Passeou o olhar em volta, as paredes forradas a madeira exótica, o mobiliário assinado por um designer famoso, alguns óleos de pintores conhecidos. A luz do intercomunicador piscou.
- Sim, Isabel?
- Senhor Presidente, tenho em linha o Padre Tomás Agostinho, da paróquia local, a pedir uma entrevista com o Senhor Presidente. O assunto é "Natal".
- Natal? - pensou o gestor de sucesso - Padre? Paróquia? Mas o que é que a religião tem a ver com este negócio do Natal?

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Solenes exéquias

O coração do velho político tinha finalmente parado de bater. O elogio fúnebre a cargo de um correlegionário de longa data prosseguia vigoroso, indiferente aos bocejos disfarçados que começavam a surgir na enorme assistência que enchia a basílica.
... pai extremoso ... esposo dedicado ... entrega total à causa pública...
Os representantes das dezoito empresas de cujos conselhos de administração fazia parte moviam afirmativamente a cabeça, com expressão compungida.
A consciência do dever de acção política, como um imperativo categórico, sempre marcou o seu carácter desde os tempos longínquos da sua militância juvenil. A sua acção foi sempre pautada pelo superior interesse nacional.
Os membros da comissão política do partido confirmavam, solenes, as palavras proferidas.
... secretário de Estado ... por várias vezes ministro ... embaixador plenipotenciário ... representante do país em vários organismos internacionais...
Na zona mais próxima da urna, reservada à família, o filho do finado pensava:
- Que chato este tipo, nunca mais se cala! E o velho que resolveu ter o enfarte na cama da amante. Felizmente a gaja soube calar-se... Mas o desastre foi ter esticado o pernil sem deixar a ninguém o número da conta na Suiça... Raios o partam!

Publicado na Minguante nº 0

Minguante no nome, mas crescente por dentro...




terça-feira, 5 de dezembro de 2006