sexta-feira, 26 de maio de 2006

Notícia de abertura

Em conferência de imprensa, a que assistiu o embaixador de Israel nos Estados Unidos, um porta-voz da “Igreja dos Onze Apóstolos do Final dos Tempos” anunciou que a Igreja tinha chegado a um acordo extra-judicial com o Estado de Israel, através do qual desistia do processo instaurado contra aquele Estado no tribunal de Broken Bow, Nebraska, relativo à execução de Jesus Cristo.
A importância envolvida no acordo não foi revelada.
Na mesma altura foi anunciada a abertura de um processo contra o Estado Italiano, referente ao mesmo homicídio.
- Ao fim e ao cabo, Roma era a potência ocupante. Como tal, era responsável por tudo que ocorria no território. E os executantes directos foram soldados romanos – esclareceu o referido porta-voz.
O embaixador da Itália, contactado por telefone, recusou-se a tecer quaisquer comentários antes de consultar o seu governo.

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Dia não

Vi logo que ia ser um dia chato quando a begónia não me deu os bons-dias. Eu sei que estive uma semana sem lhe deitar água, mas já lhe podia ter passado a birra.
Saí de casa e o pastor alemão da vivenda em frente estava triste porque tinha perdido o dono. Murmurei umas palavras de circunstância, fiz-lhe uma festa na cabeça e fui à vida.
Entrei na pastelaria e a máquina de café não se calava. Tinha ido na noite anterior ao baile dos electrodomésticos e tinha encontrado lá uma cafeteira que nem vos conto... e dava silvos de vapor para nos fazer imaginar!
O patrão não se atrevia a mandá-la calar, com medo que ela executasse a hipoteca que lhe tinha ganho a jogar às cartas.
Paguei com moedas de 6 cêntimos, e enquanto ele contava o dinheiro, saí, bati os braços e afastei-me a voar.
Que dia!

sábado, 20 de maio de 2006

FU’BOL

(Uma modesta contribuição para a futebolite, que se espalha rapidamente pelo país, e para a qual o Ministério da Saúde não dispõe de qualquer tipo de vacina.)

Ao som das pancadas na porta do quarto, olhei à volta rápido, não fosse tar à vista algum dos trecos que fazem o velho ficar com arrepios. Mas não: o spray de amoníaco, a corrente e a soqueira, já tava tudo arrumado no blusão; a faquinha no lugar dela, dentro do cano da bota direita. Tudo nos conformes!
- Entra, vô!
Ele entrou a arrastar os pés, que é a maneira como ficou a andar depois do enfarte. Os velhos são todos uns chatos – quando falamos dos velhos entre a malta cuspimos sempre para o lado com ar de nojo – mas o meu avô até é um cota assim-assim. Às vezes até conta umas tretas com piada, como aquela dá bué d'anos levar o meu pai ao estádio ver o fu'bol. E eu perguntei-lhe:
- Mas não podiam ver em casa, não havia caixotes?
E sabem o que me respondeu?
- Havia, mas muita gente gostava de ir ver ao estádio.
Isto são de certeza desvaneios do velho; às vezes também se põe a dizer que quando era novo um meco podia sair de casa à noite sozinho e desarmado; eu dou-lhe o desconto, e como ele não mexe com a minha vida, vamo-nos dando bem.
Sobre a morte do meu pai é que nunca consegui arrancar-lhe nada de jeito: diz que ele pertencia às milícias populares de auto-defesa (já perguntei ao Jaime, qué o caixa d’óculos lá do grupo, qu’até vai à mediateca ler livros, se sabia o quisso era, mas ele népias), qu'entraram numa luta com traficantes de droga e que o meu pai levou umas naifadas e chegou já morto ao hospital. Não percebo porque é que havia traficantes de uma coisa que se compra no hiper e fico cada vez mais convencido que o velho se está a passar.
O velho olhou à volta, devagar, como faz sempre, observando com mais vagar o poster a anunciar o mega concerto dos Morte em stock, o cartaz dos Furacões Verdes no lugar de honra, por cima da cama, e a minha última aquisição, a caveira em PVC fluorescente que me serve de luz de cabeceira, abafada da última vez que a malta foi arejar ao shoping.
- Então vais ao jogo?
- Tá claro, vô; temos umas contas a ajustar com os encarnadinhos (isto é o que a malta chama aos Vermelhos Vivos e que os gajos passam-se completamente!)…
- Tem calma, rapaz e não te metas em sarilhos...
Deu-me uma pancadinha no ombro e saiu do quarto; ouvi-lhe os passos arrastados e ainda o clic do caixote, acendendo automaticamente quando ele entrou na sala.
Vesti o colete e corri o fecho; pouca gente diria que por baixo do tecido preto, havia uma malha de aço capaz de parar uma bala ou uma faca. As “cuecas blindadas”, como a malta dizia na galhofa, já estavam vestidas debaixo das calças de couro.
Peguei no capacete e no blusão, atirei um té logo, vô ao passar pela porta da sala, onde ele tava já alapado frente ao caixote e desci a escada para a garagem. Sabia que ele ia ficar a ver a transmissão do jogo mas já não sei se ele topa mesmo como as coisas se passam no estádio... Bem, ele sabe que o árbitro é uma espécie de realizador de TV, a olhar para os monitores que lhe mostram as imagens enviadas pelas robocâmaras que andam pelo campo e ajudado por um banco de filtros neuronais capaz de identificar, em tempo real, a legalidade de qualquer jogada. E que um jogador que apanha um vermelho leva uma injecção que o deixa a rastejar durante 2 meses. Mas não sei se ele topa que o campo propriamente dito está totalmente dentro de uma bolha bué grande de Restran, a mesma cena de que são feitas as janelas dos carros dos gajos importantes…
E isso é o que o caixote leva a casa de cada um, são os bonecos deste jogo totalmente isolado. Mas pa nós, o que interessa é o que se passa nas bancadas! Na última vez entre nós e os encarnadinhos ganharam eles por 5 a 3 (sem contar com os feridos); hoje vamos ter que tirar a desforra!
Há outra transmissão que é feita do estádio, mas dessa o velho não sabe e não sou eu que lhe vou dizer; é a da batalha nas bancadas, e para se receber é preciso montar um descodificador acoplado à antena (ainda no mês passado estivemos a instalar uma treta dessas em casa do antigo chefe do nosso grupo, que ficou paraplégico no último jogo contra os Demónios da Foz). E a massa nas apostas em relação à porrada é muito mais do que a das apostas sobre o resultado do jogo!
Claro que eu também topo que isto do fu'bol é uma treta e é um ganda negócio e que são as multinacionais que estão por trás de tudo, da compra e venda de jogadores, das apostas, dos direitos de transmissão dos jogos, da venda das bandeiras, dos lenços, dos bonés… Ainda na semana passada, no bar onde a malta costuma parar, um gajo começou com esta conversa, e a malta foi ouvindo, uns curtindo, outros menos, mas o gajo já tava a ficar nublado e quando começou a dizer que azuis, encarnados, verdes era tudo a mesma trampa caímos-lhe em cima, levou uma carga de porrada e quando os seguranças do bar chegaram à festa já ele tinha alguns ossos partidos e já a malta se tinha pirado!
Na garagem, visto o blusão, ponho o capacete (especialmente desenhado para “choques não rodoviários”, dizia a publicidade), testo as pilhas do emissor-receptor, e cavalgo a minha Honda-Kawa. Rodo a chave, puxo um bocado pelo faz-barulho e aos 90 dB o sensor abre o portão. Deslizo pela rampa, checando pelo espelho o portão a fechar-se atrás de mim. Entro no acesso à CREL-2 e oriento-me para o local da cerimónia preparatória, respirando o ar quente do fim da tarde. Para mim, aquelas fantochadas com fogueiras, archotes e cruzes suásticas não dizem nada, mas a malta grama à brava e fica tudo na maior... E hoje vamos precisar da força toda, porque parece que os encarnadinhos também decretaram mobilização geral, e eu vou berrar tão alto como os outros…
Tiro duas pastilhas do bolso do blusão e meto-as na boca, onde se dissolvem lentamente. Uma espécie de formigueiro começa a passar-me nas veias, abro o gás, e enquanto o asfalto desliza cada vez mais depressa debaixo das rodas, começo a cantar na força máxima o hino dos Furacões Verdes...

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Sondagens

Joaquim Casquinha Limão era um cidadão exemplar. Fiel de armazém numa empresa importadora de electrodomésticos, casado, tinha um filho a frequentar o secundário. Regularizava pontualmente a sua situação fiscal, o que até nem era difícil, uma vez que o IRS era mensalmente retido pelo seu empregador: Importações Ilimitadas – Electrodomésticos Globais, SARL. Exercia também religiosamente o seu direito de voto sempre que os acontecimentos do universo político lhe davam tal oportunidade. Mas no emprego abstinha-se de emitir opiniões sobre a condução da causa pública – até porque o seu chefe tinha em geral opiniões diferentes das suas – mantendo as suas conversas limitadas à discussão dos jogos da Super-Liga, ou por vezes, vá lá, aos da Taça de Portugal.
Com o avizinhar das eleições, Joaquim Limão ficava atento a tudo o que pudesse contribuir para o seu esclarecimento. Uma manhã, ao conduzir em direcção ao emprego, a estação de rádio que escutava habitualmente deu-lhe a ouvir os resultados da última sondagem efectuada. A notícia começava “Os portugueses acham que” e seguia por aí fora. Distraiu-se um pouco com as percentagens – que de resto na sondagem seguinte já seriam provavelmente diferentes – mas a sua atenção focou-se novamente quando o locutor começou, “nos termos da lei”, a ler a ficha técnica. E aí houve um pormenor de que tomou consciência pela primeira vez. Tinham sido feitas 813 entrevistas por telefone; e este número, quando junto à frase do início da notícia, fez iniciar no seu espírito uma linha de raciocínio que viria a ter consequências relevantes.
Joaquim era bom a fazer contas de cabeça, uma capacidade muito útil na sua profissão. Vamos supor que foram 1000 entrevistas, para facilitar, pensou ele. Como somos mais ou menos 10 milhões, cada entrevistado representa – pequena pausa para o cálculo – 10 mil portugueses. DEZ MIL PORTUGUESES!
Joaquim Limão, que de entrevistas pelo telefone só tinha a experiência de alguns telefonemas para sua casa onde umas meninas o tentavam convencer que ele tinha sido premiado em concursos que ele desconhecia, e que só precisava de ir receber o prémio a uma morada que lhe davam e – não, não podemos enviar pelo correio – ficou de repente fascinado por este processo em que as respostas de uma pessoa ao telefone representavam dez mil dos seus concidadãos. Dez mil! E se responder de forma errada, há dez mil portugueses cuja opinião é contabilizada erradamente. E as consequências disto ao nível da imagem que o país faz de si próprio? Será que o entrevistado tem consciência da responsabilidade que pesa nos seus ombros enquanto responde? A estatística é uma coisa fantástica, pensou Joaquim, que tinha um temor reverencial por tudo o que fosse ciência.
Dois dias depois, estava Joaquim Limão alapado na poltrona em frente à TV a assistir ao início do concurso “Quem quer ser milionário” – normalmente acertava na pergunta antes do concorrente, o que levava o seu filho a perguntar-lhe inúmeras vezes por que é que ele não concorria – quando o telefone tocou. Deslocou-se ao átrio da entrada para atender e às primeiras palavras do outro lado da linha apercebeu-se que era uma entrevista para uma sondagem. Meio aturdido, deu o seu consentimento. Mas quando veio a primeira pergunta:
- Acha que o actual primeiro ministro acredita no Pai Natal? – Joaquim, que ia fornecer honestamente a sua opinião, parou para pensar. Será que o que eu vou dizer representa o que pensa o vizinho do 3º esquerdo? E o porteiro do prédio? E o senhor António do talho? E o senhor Lopes da tabacaria? E o senhor Jacinto, do lugar de hortaliça? E os restantes, muitos dos quais não conheço, para perfazer os dez mil que eu represento neste momento?
E perante esta multidão de honestas dúvidas, a resposta de Joaquim Casquinha Limão foi uma nada explícita “Não sabe / Não responde”. E a mesma à pergunta seguinte. E à seguinte. E assim sucessivamente.
Até à última pergunta da entrevista.

sábado, 6 de maio de 2006

Promessas...

Ela tinha as promessas na estante da sala, em cima de um paninho bordado, ao lado da fotografia do casamento.
Um dia ele chegou bêbado, e atirou com tudo, fotografia e promessas, para o chão.
- Todas as promessas quebradas - chorava ela, inconsolável, apanhando os cacos.