domingo, 30 de abril de 2006

O Processo

(Palestra proferida em Setembro de 2032, na Universidade de Jornalismo da Grande Lisboa, na abertura da cerimónia de entrega dos diplomas aos novos mestres)

Caros novos colegas

Quando eu, jovem estagiário recém saído desta Escola, comecei a cobrir no ano longínquo de 2002 o então chamado "processo da pedofilia", nunca me poderia ter passado pela cabeça que estaria aqui, trinta anos mais tarde, a falar-vos na qualidade de Bastonário da Ordem dos Jornalistas.

Aquilo que começou por ser um processo mediático, envolvendo uma dúzia de figuras públicas, e que vocês certamente estudaram em "Introdução ao jornalismo" no primeiro semestre do vosso curso, foi aumentando de tamanho à medida que iam surgindo novas acusações de corrupção, branqueamento de capitais, alteração de resultados eleitorais, "inside trading", narcotráfico, fuga ao fisco, associação criminosa, levando ao que veio a ser chamado o "megaprocesso" e que hoje é simplesmente "O Processo". "Uma teia de podridão espalhando-se pela sociedade" ou "Um cancro minando o tecido social" são frases típicas surgidas na imprensa da época. O número de pessoas envolvidas foi naturalmente também crescendo de forma exponencial, e mesmo não sendo o responsável da secção de astrologia do jornal onde trabalho, arriscaria a previsão de que qualquer de vós conhece certamente uma pessoa, e provavelmente mais, relacionada com este processo como réu, testemunha, advogado, juiz, procurador ou funcionário judicial.
Para isto contribuiu de forma decisiva a lei aprovada em 2005 que passou a impedir a prescrição dos crimes de pedofilia. O âmbito desta lei, de acordo com a nossa forma tão portuguesa de legislar, foi sendo sucessivamente ampliado através de portarias, despachos, comunicados, declarações em conferências de imprensa, entrevistas durante sessões de lançamento de livros, etc., de tal forma que um eminente consultor jurídico declarou recentemente que hoje a única ofensa passível de prescrição é provavelmente cuspir no chão.
Em 2003, quando os primeiros suspeitos foram formalmente acusados, o processo tinha alguns milhares de páginas. Dez anos mais tarde, devido à clarividência do colectivo de juízes instrutores, foi alugado um hangar no aeroporto de Lisboa para armazenar o processo.
Em 2016, ano em que fui eleito Bastonário da Ordem, houve uma cerimónia pública que assinalou o milhão de páginas.
E recentemente foi decidido pelo Ministério da Justiça a anexação de um segundo hangar ao lado do primeiro, porque neste começa a ser difícil a entrada das viaturas que transportam os documentos a anexar ao processo. Diz-se que os funcionários superiores do Ministério se referem ao tamanho de "O Processo" não em número de páginas mas em metros cúbicos. E consta que foi nomeada uma comissão para estudar a possibilidade de transferir o tribunal para o Pavilhão Atlântico no Parque das Nações.
As implicações ao nível das profissões jurídicas foram enormes: multiplicaram-se como cogumelos teses de mestrado e de doutoramento sobre "O Processo", sobretudo porque depois da extinção do segredo de justiça em 2006 todo o material constante do processo passou a ser de consulta pública; foram criadas seis ou sete novas faculdades de direito, havendo mesmo alguns profissionais do foro com mais de vinte anos de actividade que nunca trabalharam noutros casos. E os recém licenciados deixaram de ter dificuldade em encontrar estágios de advocacia.
Quanto a nós, jornalistas, algo de semelhante aconteceu: a cobertura dada aos acontecimentos foi aumentando regularmente em todos os media, e foi necessário destacar mais e mais jornalistas para trabalhar em exclusivo no assunto que ia ocupando mais páginas nos jornais e mais horas na televisão. Eu próprio preciso de fazer um esforço para me lembrar quando foi a última vez que escrevi alguma coisa que não fosse sobre "O Processo".
Mas qual é o problema principal no que respeita ao nosso trabalho? O cansaço do público! Os pormenores técnicos de um processo jurídico são em geral fastidiosos; ao fim de pouco tempo, recursos, audições, interrogatórios, inquirições, tudo isto se confunde na cabeça do cidadão comum. O que o público gosta é de opiniões sobre os arguidos (sobretudo de pessoas que mal os conhecem) , detalhes anatómicos dos mesmos, depoimentos de ascendentes, descendentes ou colaterais até ao 3º ou 4º grau, sempre que possível apimentados... Isso é o que o público gosta. Mas cansa-se com facilidade...
E é isso que nos leva à procura permanente de novos ângulos de abordagem do assunto. Quando filmar com teleobjectiva a chegada dos réus ao tribunal se tornou trivial, alguns métodos realmente engenhosos foram desenvolvidos para dar ao público o que ele queria – um grande plano da cara de um réu. Jornalistas disfarçados de funcionários judiciais, de elementos das forças de segurança... Houve mesmo uma estação de televisão que contratou um suicida para se atirar contra o carro celular que transportava um dos réus, com uma câmara de vídeo disfarçada num dos botões do casaco. Este caso foi analisado pela Comissão de Ética da nossa Ordem e a estação em causa sofreu uma admoestação registada.
Nos últimos dias o aspecto mais salientado tem sido a competição entre as cadeias de televisão. Tudo começou quando o carro de exteriores de uma pisou o cabo que alimentava a parabólica da outra. O operador de câmara desta reagiu, enfiando a objectiva pelo pára-brisas do carro. O motorista respondeu com um golpe de karate que enviou directamente o operador de câmara para o hospital do Alcoitão. A situação escalou, com alguns feridos e mortos de parte a parte, a tal ponto que as equipas de reportagem vão agora trabalhar de capacete e colete à prova de bala, acompanhadas de vários guarda-costas e com ambulâncias e paramédicos em stand-by. Ontem e hoje aconteceram apenas algumas escaramuças, a horas convenientes para o directo nos telejornais.
E o futuro? Ninguém sabe, ele será construído por vocês. Façam coisas, e se com isso aumentarem as audiências, saberão que estão no bom caminho. Sobretudo nunca esqueçam o lema desta Escola: "Dar ao público o que o público gosta e quer".
Muito obrigado pela vossa atenção.


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1 comentário:

João Ventura disse...

E não meti ninguém a transformar-se em barata gigante... mas se calhar também não era preciso...