quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Eleições no País da Simetria

O partido no poder tinha sido, nos últimos anos, o Partido Simétrico (PS). O que era óbvio para quem visitasse o país: os edifícios mais recentes eram rigorosamente simétricos; nos automóveis, a frente e a traseira confundiam-se; qualquer monumento, construção, estrutura exibia uma ou mais formas de simetria.
Do programa do partido constava, naturalmente, a procura e adopção da simetria em todos os aspectos da vida – qualquer militante ou simpatizante usava roupas irrepreensivelmente simétricas e mesmo o cabelo era sempre penteado com risca ao meio. Qualquer pequena irregularidade – uma borbulha, um sinal, uma verruga, enfim qualquer pequena falha da natureza, ela própria considerada essencialmente simétrica – era imediatamente corrigida cirurgicamente, afim de manter a simetria no mundo.
No plano social, o número de pobres era rigorosamente igual ao número de ricos; o número de estúpidos igualava o número de inteligentes; enfim, um país rigorosamente dividido ao meio, uma igualdade de um lado e outro da mediana. A fazer fé, naturalmente, nas estatísticas do governo, que, por outro lado, era sistematicamente acusado pela oposição de viciar as estatísticas.
Em virtude dos seus princípios programáticos, o PS era obviamente um partido rigorosamente centrista.
A oposição era constituída pelo Partido Hemi-Simétrico (PHS) – da direita, ou da direita moderada, consoante os comentadores – pelo Partido Assimétrico (PA) – da esquerda, ou da esquerda moderada, segundo outros comentadores – e pelo Partido Anti-Simétrico (PAS) – da esquerda radical, de acordo com todos os comentadores.
O Partido Hemi-Simétrico (PHS) era adepto da simetria, mas de uma forma mais sofisticada. Assim, por exemplo, não achavam necessário que houvesse igual número de ricos e de pobres, mas sim que o número de ricos vezes as respectivas fortunas fosse igual ao número de pobres vezes o valor das respectivas míseras posses. Desta forma, argumentavam, ocorreria a concentração de capital imprescindível para que o país desse o necessário salto em frente.
O Partido Assimétrico (PA) era de opinião que simetria ou assimetria era uma questão de gosto pessoal. Era uma espécie de mistura de cidadãos simétricos, desiludidos com algumas simetrices exageradas do PS, e de cidadãos que tinham sido anti-simétricos na sua juventude, mas que se tinham entretanto cansado dos excessos da anti-simetria.
O Partido Anti-Simétrico (PAS) era uma espécie de PS ao contrário. Qualquer acção de um anti-simétrico procurava deliberadamente a não-simetria. A sua casa teria forçosamente a porta de um lado e as janelas do outro, estas de preferência de tamanhos diferentes. As suas roupas teriam que ser ferozmente anti-simétricas – casacos com uma manga vermelha e outra verde estiveram na moda durante algum tempo. Penteados com risca ao lado, em casos extremos um lado da cabeça rapado, piercings só de um lado da cara...
Com a aproximação das eleições, o país foi surpreendido pelo aparecimento de um novo partido: o Partido Supra-Simétrico (PSS).
Quase da noite para o dia, surgindo praticamente do nada, começou a ser motivo de conversas de rua, de comentários dos opinion makers, de artigos de primeira página nos jornais mais conceituados. Porque o seu programa político veio introduzir um corte radical no universo consensual, um paradigm shift na paisagem ideológica dominante. Muito resumidamente, afirmava que todas as controvérsias em torno da simetria e das diversas facções de não-simetria ficavam sem sentido (“um mero exercício de futilidade”) quando examinadas a partir de um espaço de dimensionalidade mais elevada. Esta declaração, apresentada pelo porta-voz do partido na conferência de imprensa de lançamento, constitui obviamente uma simplificação; a argumentação detalhada, apresentada em “A Supra-Simetria: Um Programa de Governo”, desenrolava-se ao longo de 185 páginas de expressões matemáticas, separadas apenas, de onde em onde, por expressões do tipo “portanto”, “daqui, como é evidente” ou “segue-se que”.
A publicação do programa teve na sociedade civil um efeito demolidor. Olhando aquelas páginas e páginas de densa notação matemática, as pessoas pensavam: “Não percebo nada, estes tipos devem ser muito inteligentes... Devem ser capazes de governar bem o país... Vou votar neles!”
E foi assim que, contrariamente às previsões de todos os analistas, mas de acordo com os comentários dos mesmos analistas após a publicação dos resultados, o PSS averbou uma tremenda vitória, obtendo a maioria absoluta.
A sessão inaugural da nova legislatura logo mostrou a diferença de postura do novo poder. Os seus deputados, em vez de ocuparem uma posição central no hemiciclo, como sempre fazia o PS, distribuíram-se aleatoriamente pela sala, desta forma mostrando estarem acima das implicações do conceito de simetria.
A primeira medida do novo parlamento, aguardada com grande expectativa, foi a aprovação de uma lei destinada a facultar a todos os cidadãos de maior idade uma licenciatura em Matemática, para que pudessem compreender, em toda a sua profundidade, o programa do PSS. Esta decisão foi muito bem recebida pelos departamentos de Matemática de todas as universidades do país. A esta, outras leis se seguiram, de igual importância estratégica e cada uma delas mais inovadora do que a anterior.
Porém, com o passar do tempo, foi emergindo no país profundo um vago sentimento de mal-estar. Uma parte dos cidadãos queixava-se que estudar Matemática era cansativo, atribuindo em geral as culpas aos professores que não explicavam bem as matérias; mas a generalidade ressentia-se sobretudo do facto de todas as questões importantes serem decididas na capital.
Propulsionado pelo recém-aparecido PANS (Partido Anarco-Simétrico, que alguns analistas mais formais recusavam considerar um partido pelo facto de, assumidamente, não ter programa; o que se aproximava mais de um programa era um site que mantinham na Web onde qualquer pessoa podia escrever o que lhe apetecesse...), um abaixo-assinado divulgado na SimNet reuniu em tempo recorde as assinaturas necessárias para forçar o parlamento a realizar um referendo.
Este referendo, com o título (escolhido pelos proponentes e obviamente provocatório) “Simetria? O que é isso?”, foi ganho de forma inequívoca pelos partidários da regionalização, sendo desta forma decidido que cada região teria o grau de simetria que entendesse.
Ficou célebre, na campanha que antecedeu o referendo, um debate televisivo em que, quando um dos participantes disse “A simetria quer-se como o sal na comida, nem de mais, nem de menos”, um outro retorquiu “Pois eu, como tenho a tensão arterial alta, prefiro sem sal nenhum!”.
E assim, uns anos mais tarde, o país era como um mosaico, com as diferentes regiões exibindo diversas posições com respeito à simetria: desde as fundamentalistas supra-simétricas, às ferozmente simétricas ou anti-simétricas, passando por diversos graus intermédios.
Como este panorama político se alterava quase sempre que havia eleições (que com alguma frequência, e por razões diversas, eram antecipadas) surgiu uma nova profissão no mercado de trabalho, os engenheiros simetrizadores, licenciados em Engenharia Simetrizeira. Estes profissionais eram especialistas em simetrizar tudo aquilo que, na opinião dos decisores políticos, não era simétrico ou não o era em grau suficiente; também estavam habilitados, num contexto diferente, a des-simetrizar ou assimetrizar tudo o que fosse demasiado simétrico para o poder em exercício.
Sendo uma profissão que rapidamente passou a gozar de grande prestígio social, os requisitos de entrada nas faculdades onde se ensinava este novo ramo da engenharia eram os mais elevados de todo o ensino superior. A Ordem dos Engenheiros Simetrizadores era um dos organismos profissionais mais importantes, com forte influência (demasiada influência, havia quem dissesse, entre dentes) em todos os sectores da vida económico-social, e o seu Bastonário frequentava com naturalidade os corredores do poder.
Foi por esta altura que um famoso político, já na reforma, que matava o tempo escrevendo a sua auto-biografia, instado por um jornalista a comentar as profundas mudanças que tinham varrido o país no espaço de uma geração, respondeu, de forma lapidar, com a frase que o faria entrar na História:
- É a vida!...



Nota final: O autor declara que esta estória, como todas as estórias, deve certamente ter uma moral, mas que ele (autor), embora se tenha esforçado, não a conseguiu descobrir.

    Continue a ler...

Sem comentários: